Em 1979, o capitão do Exército taiwanês Lin Zhengyi tomou uma decisão cercada de riscos: desertou de sua posição na ilha de Kinmen e atravessou a nado um trecho de 2 km do estreito de Taiwan para começar uma vida nova na China continental. Hoje com 72 anos, ele não parece ter dúvidas de que fez a aposta certa. A China virou potência global e Justin Yifu Lin, como passou a ser chamado, é um dos economistas mais renomados do país. Assessorou o governo, foi economista-chefe do Banco Mundial (2008-2012) e hoje é reitor do Instituto de Nova Economia Estruturalista, disciplina criada por ele.
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Em entrevista ao GLOBO em seu escritório, na parte mais bucólica da Universidade de Pequim, Lin explicou porque mantém-se otimista sobre a economia chinesa, afirmou que o país está mais forte para enfrentar a guerra tarifária iniciada pelos EUA e citou o ex-presidente americano John Kennedy ao justificar sua dramática fuga de Taiwan, 46 anos atrás: “Pergunte não o que o país pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo país”.
Há uma dissonância nas percepções sobre a economia chinesa: analistas do exterior são céticos sobre a retomada, assim como muitos chineses comuns. Mas o governo de Pequim insiste que o quadro é positivo. A situação o preocupa?
Não é fácil entender a economia chinesa. Há muitos problemas, e se você só olhar para eles certamente cairá em teses pessimistas, como o “colapso iminente” da China. O país tem muitos desafios, mas a resiliência se mantém. Desde 2008, a China contribui continuamente com cerca de 30% do crescimento econômico global. Crescimento econômico depende de aumento produtividade, inovação tecnológica e o surgimento de novos setores com valor agregado. Por isso estou confiante.
A meta de crescimento oficial da China para este ano, de 5% do PIB, é totalmente viável, apesar das tensões comerciais com os EUA. Isso porque o país tem um enorme escopo para avanço tecnológico e desenvolvimento industrial. Atualmente o PIB per capita da China está em torno de US$ 14 mil, 25% do americano.
É uma proporção equivalente à da Alemanha no meio da década de 1940, do Japão nos anos 1950 e da Coréia do Sul nos anos 1980. Esses países foram capazes de crescer 8% ou 9% por mais de uma década.
A China tem outra vantagem: a “quarta revolução industrial”, que inclui inovação, inteligência artificial e big data. Essa corrida é nova para todo mundo, mas a China está adiante em algumas frentes. Primeiro, o capital humano. Temos uma população de 1,4 bilhão, formamos cerca de 7 milhões de estudantes por ano, metade em ciência, matemática e engenharia. É mais do que todos os países desenvolvidos somados.
Segundo, um grande mercado doméstico, capaz de absorver inovações e torná-las competitivas. Terceiro, a China tem a mais completa cadeia de suprimentos, o que permite que qualquer inovação tenha os componentes necessários para virar produto. A quarta vantagem é a política industrial ativa do governo para apoiar a inovação. Somando tudo, a China tem um potencial de crescimento de 8% do PIB per capita nas próximas décadas.
Um dos principais desafios do governo tem sido estimular a confiança. Se o potencial é tão promissor, porque isso não se reflete na confiança do consumidor e do investidor?
É preciso diferenciar entre os desafios de curto e longo prazo. Na minha visão, a maioria dos desafios, especialmente no setor privado, são passageiros. A China é o maior país exportador. Mas desde 2008 o comércio global começou a desacelerar e nunca se recuperou. Antes de 2008 o PIB global crescia 4,5% e o ritmo do crescimento do comércio era duas vezes maior. Hoje o comércio cresce 3%, até menos. Quem sofreu mais foi a China, por ser o maior exportador.
Entre 2001, quando a China entrou na OMC, em 2007, o ritmo de crescimento do comércio foi de mais de 22% ao ano. E 97% dessas exportações vêm do setor privado. O alto nível de expectativa gerou muito investimento com base em projeções de crescimento que não se cumpriram. Isso cria pessimismo.
O comércio não irá se recuperar, ainda mais agora, diante das tensões comerciais com os EUA. Mas a demanda ainda existe. Com inovação tecnológica é possível reduzir os custos e aumentar as exportações. Igualmente importante: novos setores emergirão. Como eu disse, na quarta revolução industrial nós temos as vantagens. Para recuperar a confiança é preciso afastar percepções equivocadas, como a de que a China seguirá o caminho do Japão e cairá na estagnação.
Em 1980 o PIB do Japão era 65% do PIB dos EUA. Hoje é 20%. O Japão sofreu uma lavagem cerebral do neoliberalismo e abriu mão da política industrial. A China está em outro estágio de desenvolvimento e continuará a usar política industrial para apoiar novos setores. Veja o caso dos veículos elétricos, dos painéis solares, baterias elétricas, setores que estão explodindo.
A guerra comercial com os EUA é um desafio passageiro ou de longo prazo?
Fomos educados pelos ensinamentos e pelas teorias dos EUA. Portanto, nunca imaginávamos que os EUA iriam usar o comércio como uma arma. Isso irá ferir não apenas os parceiros comerciais, mas sobretudo os próprios EUA. A primeira eleição de Trump (Donald Trump, atual presidente americano) foi uma surpresa e não estávamos preparados.
Desta vez ele está mais agressivo, mas ainda assim esperamos que seja uma política temporária. A China hoje está melhor posicionada para negociar e se defender. Nossa economia é quase tão grande quanto a americana, temos capacidade de retaliação. Seremos feridos, mas também podemos ferir.
O governo Trump parece querer um ‘desacoplamento’ econômico com a China. Acha isso possível?
Tudo é possível. Mas que fique bem claro, se os EUA querem desacoplar, eles têm muito a perder. Significa que eles terão que reconstruir os setores da economia responsáveis pelos produtos importados que lhes dão vantagens comparativas. Se decidirem desacoplar, há duas alternativas: produção doméstica ou importação.
Ambas vão encarecer o produto final. Mas Trump não quer importar de outros países, ele quer reconstruir a indústria nos EUA. Isso sairá ainda mais caro e baixará o nível de produtividade do país. Ficará mais fácil para a China alcançar os EUA. Não acho que a política de descolamento seja permanente, mas se for, boa sorte. A China sairá vitoriosa.
Além do déficit comercial dos EUA com a China, o que o governo americano alega para o tarifaço é que Pequim tem práticas desleais. Faz sentido?
É só uma desculpa. No processo de desenvolvimento industrial, todo país precisa de apoio. Se olharmos os setores em que os EUA hoje são dominantes no mundo, sempre houve no estágio inicial o apoio do governo em pesquisa básica.
Mesmo para países que chegaram com atraso, como o Brasil e a China, é preciso incentivo do governo para melhorar as instituições, a infraestrutura, reduzir o custo das transações para que os produtos se tornem competitivos. Então eu não vejo o governo chinês fazendo algo tão diferente do que faz o americano ou qualquer outro governo.
Sua proposta da “nova economia estruturalista” afirma que todo país pode encontrar o caminho para o desenvolvimento se apoiar os setores em que tem vantagens comparativas. Como isso pode ser feito por países que perderam o bonde da inovação tecnológica?
É uma grande questão. Precisamos de um novo arcabouço intelectual. Por isso eu propus a nova economia estruturalista. Sabemos que o desenvolvimento econômico é um processo de transformação estrutural por meio de inovação tecnológica. Assim os trabalhadores podem produzir mais e melhor, e também entrar em novas indústrias, com maior produtividade e valor agregado. Como fazer isso? Focar nos setores onde há vantagens comparativas.
As ideias neoliberais pregavam que o governo não deve intervir. Como resultado, os antigos setores industriais ficaram desprotegidos e entraram em colapso. E, sem a facilitação do Estado, novos setores nunca emergiram. Na América Latina isso levou a uma desindustrialização prematura. As antigas indústrias morreram e as novas não nasceram, porque vocês foram guiados por ideias equivocadas.
É preciso ter como alvo os setores certos, onde há vantagens comparativas, e transformá-las em vantagens competitivas. O problema do pensamento desenvolvimentista atual é sempre olhar para outros países como referência. Minha proposta é que cada país busque suas próprias vantagens competitivas.
Como vê as críticas de que o governo chinês deveria ser mais ousado nas medidas de estímulo à economia para, por exemplo, aumentar o consumo doméstico?
Na estratégia de longo prazo, acho que a China está fazendo a coisa certa. Temos um crescimento movido por investimento. É preciso manter a produtividade em alta, o que exige investimentos em inovação tecnológica nos setores principais da economia. Para ser sustentável, o crescimento é sempre movido por investimento. Não há crescimento movido por consumo. Pode ser que o consumo conduza ao crescimento por alguns anos, mas o resultado pode acabar sendo o aumento da dívida e crise.
O aumento do consumo na China tem sido de 8% por ano em média por mais de 40 anos. É a taxa mais alta de crescimento do consumo do mundo. O que há de errado nisso?
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Mesmo que o consumo seja baixo em relação ao PIB, o que importa é o aumento como um todo. Mas, agora que há um choque nas exportações, deve haver ajuda a certos setores para que atravessem esse período. E também ajuda às famílias. Num momento de excesso de capacidade causada pela queda nas exportações pode haver perda de empregos, o que torna necessário tomar medidas temporárias de apoio ao consumo
O envelhecimento da população tem sido apontado como um dos principais obstáculos para que a China continue crescendo a longo prazo. Isso preocupa?
Todos os países de alta renda enfrentam o envelhecimento da população, mas isso não significa necessariamente estagnação. Por exemplo, a Suécia foi o primeiro país com esse desafio. Em 1960, 14% de sua população estava acima de 65 anos. Mas o crescimento da Suécia manteve-se estável. No Japão, o crescimento per capita caiu para menos de 1%, mas não por causa do envelhecimento, e sim porque o país perdeu a capacidade de inovação tecnológica.
Depois dos anos 1980 você consegue pensar em alguma nova tecnologia vinda do Japão? Não. Antes disso eles estavam na fronteira tecnológica global. Naquela época os semicondutores já eram a indústria de ponta no mundo e eles eram líderes globais no setor. Mas aí, sob pressão dos EUA, eles desistiram do setor.
Em 1979, quando o senhor fugiu de Taiwan, a China estava apenas iniciando sua abertura. Esperava que o país se tornaria a potência atual?
É como Kennedy disse em sua posse: “pergunte não o que o país pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo país”. Acho que isso deveria ser um lema universal para a elite de qualquer país. Eu sou uma pessoa de sorte. Comparado com gerações anteriores, eles tinham a mesma aspiração e sacrificaram muito mais do que eu. Infelizmente, naquela época a China estava em decadência.
Mas eu tive sorte de cumprir minha missão e ver a ascensão do país. A reunificação (com Taiwan) será o resultado final, isso com certeza. E o fundamento será a economia. Mas temos 5 mil anos de sabedoria. E de paciência.
O senhor ainda pratica natação?
Já não mais. Estou ficando velho (risos).
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