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Uma investigação revela que nove em cada dez juízes no Brasil receberam mais que os ministros do STF em 2024, desafiando o princípio constitucional do teto salarial do funcionalismo. A proliferação de “penduricalhos” elevou os custos da máquina pública para patamares bilionários, enquanto o debate sobre privilégios no Judiciário e no Ministério Público ganha força no Congresso.
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Em 2024, o princípio constitucional que deveria limitar os salários do funcionalismo público no Brasil revelou-se, na prática, uma ficção conveniente. Um levantamento do UOL mostrou que 36 mil funcionários da elite do serviço público — entre juízes, desembargadores e integrantes do Ministério Público — superaram o teto do funcionalismo, que deveria ser o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Os dados indicam que, na prática, nove em cada dez magistrados do país receberam valores superiores aos de seus pares na mais alta corte da nação.
A lógica é paradoxal: o teto do funcionalismo, que deveria restringir os maiores vencimentos do serviço público, foi convertido em um patamar mínimo para as carreiras mais altas do Judiciário e do Ministério Público. Os mecanismos que possibilitam esse contorno legal são os chamados “penduricalhos” — benefícios adicionais, como auxílios e indenizações, que não são formalmente considerados salários e, por isso, escapam ao chamado “abate-teto”, mecanismo de desconto automático de remunerações acima do limite constitucional.
O impacto financeiro é avassalador. Em apenas três anos, os gastos com esses supersalários mais que triplicaram: saltaram de R$ 3,1 bilhões, em 2021, para R$ 10,9 bilhões, em 2024. O valor anual despendido com os rendimentos que ultrapassam o teto já chega a R$ 13 bilhões. E o número real de beneficiados pode ser ainda maior, dado que nem todas as bases de dados públicas do Ministério Público foram completamente analisadas.
O fenômeno da “licença compensatória” e a multiplicação dos auxílios
O crescimento desenfreado dos supersalários não ocorre por acaso. Especialistas apontam que a origem do problema está no próprio desenho institucional do Judiciário e do Ministério Público, cujos membros têm ampla autonomia para definir os próprios vencimentos. “A maior parte [dos supersalários] está no Judiciário e no MP porque eles decidem as próprias remunerações. Quando os benefícios são para poucos, eles viram privilégios”, observa Vanessa Campagnac, pesquisadora da organização Republica.org e coautora do “Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público”.
Entre os novos expedientes utilizados para burlar o teto constitucional, um dos mais notáveis é a chamada “licença compensatória”, um benefício concedido a magistrados e membros do Ministério Público que acumulam funções, como substituir colegas ausentes ou exercer atividades adicionais. Originalmente criado para remunerar trabalho extra dentro dos limites do teto salarial, o benefício foi transformado, em 2023, em uma gratificação que pode ser acumulada sem restrições. Essa mudança regulatória foi aprovada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e, posteriormente, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O impacto dessa manobra se reflete nos contracheques da magistratura: um em cada três juízes recebeu, em 2024, mais em indenizações do que em salário fixo. “A maioria do Judiciário já recebe esse penduricalho, aumentando o salário em até um terço — em média, R$ 12 mil a mais, todo mês”, afirma Cristiano Pavini, da ONG Transparência Brasil.
O resultado é uma evidente inversão de hierarquia salarial. Dados da investigação do UOL apontam que 93 dos 99 juízes aprovados no concurso de 2023 do Tribunal de Justiça de São Paulo já recebiam, apenas um ano depois, valores superiores à média dos ministros do STF. Ou seja, um juiz substituto em uma cidade do interior, como Dracena (SP), pode ganhar mais do que os magistrados que ocupam cadeiras na mais alta instância do Judiciário brasileiro. “Isso acaba quebrando o sentido de hierarquia. São juízes recém-aprovados no concurso recebendo mais que o ministro da mais alta Corte do país. É ilógico”, avalia o economista e especialista em políticas públicas Bruno Carazza, autor de O País dos Privilégios.
MP-SP autoriza penduricalho milionário a promotores
A crise dos supersalários no Judiciário e no Ministério Público ganhou um novo capítulo com a recente decisão do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) de autorizar um pagamento extra que pode chegar a R$ 1 milhão por promotor. O benefício, chamado de compensação por assunção de acervo, foi concedido retroativamente para cerca de 1.900 membros da instituição, como compensação por uma suposta sobrecarga processual entre janeiro de 2015 e agosto de 2023.
A decisão, que pode gerar um custo superior a R$ 1 bilhão para os cofres públicos, foi justificada com base em uma recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que, por sua vez, seguiu um precedente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2020, que concedeu o mesmo benefício aos magistrados. Como o STF considera que benefícios dessa natureza têm caráter indenizatório, os valores não entram no cálculo do teto do funcionalismo, permitindo que promotores e procuradores superem os limites salariais estabelecidos pela Constituição.
Atualmente, os promotores de São Paulo já recebem, em média, R$ 58,5 mil líquidos por mês — bem acima do teto constitucional, que deveria ser de R$ 37,7 mil para promotores de carreira e R$ 39,7 mil para procuradores. A decisão do procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, ocorre em meio a discussões no Congresso sobre medidas para limitar os supersalários. Fontes indicam que o MP-SP buscou antecipar o pagamento para garantir o direito da categoria antes que possíveis mudanças legislativas possam restringir benefícios semelhantes no futuro.
A falta de clareza nos critérios para definir o que configura sobrecarga processual permitiu que dois terços dos membros da instituição fossem contemplados pelo novo benefício. Apesar da autorização, o MP-SP afirma que não há previsão para o desembolso imediato e que os valores serão pagos conforme a disponibilidade orçamentária, de forma parcelada.
Com um orçamento de R$ 3,7 bilhões para 2024, além de um fundo especial de cerca de R$ 300 milhões, o MP-SP mantém sua autonomia financeira para gerenciar esses pagamentos. No entanto, a ampliação dos supersalários e a crescente criatividade na concessão de benefícios reforçam a urgência do debate sobre a moralidade e os limites dos privilégios no serviço público.
A crítica de Flávio Dino e a resposta do STF
O tema dos supersalários tem gerado reações entre as próprias instituições do Judiciário. Em uma decisão recente, o ministro Flávio Dino, do STF, criticou a generalização de benefícios e negou um pedido para pagamento retroativo de auxílio-alimentação a um promotor, que pleiteava R$ 25,7 mil referentes ao período de 2007 a 2011. “Trata-se de orientação fundamental para evitar abusos, como rotineiramente tem sido noticiado acerca de pagamentos denominados de supersalários. Até mesmo auxílio-alimentação natalino já chegou a se anunciar, exatamente em face desse contexto de pretendido e inaceitável vale-tudo”, afirmou Dino em sua decisão.
Já o Supremo Tribunal Federal, por meio de sua assessoria de imprensa, declarou que “não apoia pagamentos ilegais ou ilegítimos” a magistrados e desembargadores, mas ponderou que alguns benefícios podem ser “legitimamente pagos acima do teto, como eventual acúmulo de varas ou acúmulo de acervo”. A Corte também manifestou apoio a discussões no Congresso sobre a regulamentação das vantagens remuneratórias.
No entanto, até o momento, o CNMP — órgão que deveria exercer controle administrativo sobre o Ministério Público — não se pronunciou sobre as denúncias.
O que vem pela frente?
O debate sobre os supersalários não se restringe ao Judiciário e ao Ministério Público. No Executivo e no Legislativo, ao menos 8.000 altos funcionários também receberam acima do teto em 2024, incluindo diplomatas, auditores fiscais e militares. Essa é uma das razões pelas quais o governo federal tem demonstrado interesse crescente no tema.
Na semana passada, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que a limitação dos supersalários será uma das prioridades econômicas do governo no Congresso para 2025 e 2026. O Ministério da Gestão e Inovação, por sua vez, declarou que a aplicação rigorosa do “abate-teto” gerou uma economia de R$ 238,6 milhões entre julho de 2023 e junho de 2024.
A resistência, contudo, promete ser grande. O Judiciário e o Ministério Público possuem grande influência política e jurídica para travar mudanças que restrinjam seus benefícios. “Historicamente, sempre que há um esforço para restringir os supersalários, surgem novas formas de driblar as regras. É uma batalha contínua entre o interesse público e a criatividade institucional para manter privilégios”, conclui Bruno Carazza.
Enquanto isso, o debate sobre a moralidade dos supersalários avança, e a pergunta central permanece: o teto salarial do funcionalismo público será finalmente respeitado ou continuará a ser apenas um limite simbólico, destinado a ser contornado pelos mais poderosos?
Super Salários no MPMS
Enquanto a maioria dos brasileiros enfrenta dificuldades com inflação, desemprego e cortes orçamentários, uma parcela dos servidores públicos segue recebendo valores muito acima do teto constitucional, graças a uma série de benefícios adicionais conhecidos como “penduricalhos”. No Mato Grosso do Sul, o Ministério Público do Estado (MPMS) não apenas concede remunerações que ultrapassam R$ 180 mil mensais, como também acaba de regulamentar mais uma indenização, abrindo caminho para a ampliação desses pagamentos.
A mais recente decisão, publicada no Diário Oficial do MPMS, permite o pagamento de uma nova verba para membros do órgão que realizem “serviços de natureza extraordinária”. Embora o termo pareça indicar uma compensação justa por esforços excepcionais, até o momento, o MPMS não especificou claramente o que se enquadraria nessa categoria. O movimento gerou críticas sobre a transparência do órgão e a legalidade da prática, que permite ganhos muito acima do teto constitucional de R$ 44.008,52 estabelecido para servidores públicos.
O que são os “penduricalhos”?
Os chamados penduricalhos são benefícios e indenizações que, por possuírem caráter compensatório ou indenizatório, não entram no cálculo do teto salarial do funcionalismo público. Dessa forma, membros do MP conseguem receber valores muito superiores ao permitido pela Constituição.
Entre os penduricalhos já existentes no MPMS estão:
Compensação por plantão, que, em um único mês, já rendeu até R$ 37,7 mil extras para um promotor;
Acúmulo de processos, que pode gerar adicionais de mais de R$ 12 mil;
Gratificação de prestação de serviço à Justiça Eleitoral;
Auxílio-moradia, mesmo para quem reside em imóvel próprio;
Diárias e indenizações por mudança e transporte;
Compensação por cargos de confiança ou participação em comissões.
Esses benefícios criaram um efeito cascata dentro da instituição, permitindo que, em novembro de 2024, pelo menos 11 promotores do MPMS recebessem mais de R$ 100 mil em um único mês. Em agosto do mesmo ano, um promotor chegou a embolsar R$ 181,5 mil brutos, sendo R$ 72,5 mil apenas em verbas extras.
A regulamentação da nova indenização no MPMS ocorre em um contexto mais amplo, em que outras unidades do Ministério Público já estabeleceram benefícios semelhantes. No Estado de São Paulo, por exemplo, promotores já têm direito a uma compensação extra por “acúmulo de acervo processual”, que pode render até R$ 1 milhão por profissional.
O pagamento desse tipo de benefício foi autorizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) em 2022 e rapidamente regulamentado pelo MPMS, permitindo aos promotores sul-mato-grossenses acessarem valores semelhantes aos de São Paulo. A justificativa oficial é a de que o volume processual extra exige compensação financeira, mas críticos apontam que tais pagamentos mascaram aumentos salariais indiretos, burlando o teto do funcionalismo.
O efeito cascata e a brecha do Supremo Tribunal Federal
A ampliação dos penduricalhos no MPMS não é um fenômeno isolado. Desde 2020, decisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) vêm criando precedentes para essas remunerações extras. O STF, por exemplo, considera que esses pagamentos têm caráter indenizatório e, portanto, não devem ser incluídos no cálculo do teto constitucional.
Essa interpretação abriu margem para que magistrados e membros do Ministério Público de todo o país passassem a receber muito acima dos R$ 44.008,52 previstos como limite salarial para servidores. Atualmente, a média salarial bruta dos membros do MPMS já atinge R$ 74.847,93, com alguns vencimentos chegando a R$ 136 mil.
Apesar do impacto orçamentário desses benefícios, o MPMS não divulgou detalhes sobre quais critérios serão adotados para definir o que configura um “serviço de natureza extraordinária”, tampouco apresentou estudos sobre a necessidade ou o impacto financeiro da nova indenização.
Procurado para comentar os valores pagos aos membros do MPMS, o órgão não respondeu até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.
Críticas e a questão ética
A criação e regulamentação desses benefícios extras em um país onde a maioria da população recebe menos de três salários mínimos reacende debates sobre a moralidade dos super salários no setor público. Embora as verbas adicionais estejam amparadas por regulamentações internas, o fato de que servem para multiplicar vencimentos já elevados levanta questões sobre a real necessidade dessas indenizações.
Além disso, especialistas questionam se o excesso de benefícios não compromete a isonomia dentro do funcionalismo, criando uma casta privilegiada dentro do Estado. No caso do Ministério Público, cuja função é zelar pelo cumprimento das leis e combater irregularidades, os altos vencimentos e a falta de transparência nos critérios de pagamentos podem minar sua credibilidade perante a sociedade.
Enquanto a questão não é amplamente debatida e regulamentada com mais rigor, o que se vê é um cenário onde o teto salarial do funcionalismo se tornou meramente simbólico, enquanto os chamados penduricalhos garantem que poucos servidores, em posições estratégicas, continuem a acumular remunerações milionárias.
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