Antissionismo não é antissemitismo: por que é essencial entender essa diferença?
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A Câmara dos Deputados está analisando o Projeto de Lei 472/25, que, sob o pretexto de combate ao “antissemitismo”, poderá criminalizar manifestações que denunciam a política de limpeza étnica promovida por Israel contra a população palestina. De autoria do deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ), a proposta adota no Brasil a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), uma manobra do lobby sionista pelo mundo e, também, no Brasil.
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Pelo texto, práticas como a negação, distorção ou relativização do holocausto eurojudeu durante a II Guerra Mundial serão tratadas como graves ofensas, sujeitas a sanções legais. Além disso, a proposta deixa claro que a contestação da legitimidade do estado de Israel poderá ser enquadrada como manifestação antissemita, seguindo o entendimento da IHRA, que inclui entre exemplos de antissemitismo “negar ao povo judeu o direito à autodeterminação”, como afirmar que a existência de Israel é um empreendimento racista.
Até aí tudo bem. O problema é que, embutido na lei, estão mecanismos que pretendem negar aos críticos do sionismo o direito de criticar esta política que tem sido base para negar a própria existência do povo palestino e seu direito a um Estado nacional.
Segundo o presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah, tudo isso significaria que acusar Israel de um projeto colonial, de substituição de uma população originária (a palestina) por uma estrangeira (a europeia, em sua maioria), “logo, negar o mito sionista de ‘autodeterminação’ [para promover] o processo colonial, de limpeza étnica, apartheid, etc, pode ser considerado questionamento à ‘legitimidade’ deste regime estatal”.
O jornalista Eduardo Vasco, especializado em política internacional, expõe a arbitrariedade da interpretação do PL 472/25. “Questionar a legitimidade da existência de um Estado não é o mesmo que questionar a legitimidade da existência de um povo”, diz. “Esse PL visa manipular e amordaçar o debate público sobre os crimes do estado de Israel nos últimos 78 anos, que consistem em limpeza étnica de quase um milhão de palestinos, genocídio, execuções sumárias, torturas e assassinatos em campos de concentração e uma fase de extermínio de mulheres e crianças em Gaza, que já dura mais de um ano e meio”, completa.
A definição da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, adotada em 26 de maio de 2016, que sustenta o projeto de lei, contém especialmente três passagens extremamente problemáticas, que basicamente isentam Israel de todos os seus crimes e, ao reverso, criminaliza todos os que os apontarem e denunciarem.
Uma delas é a que afirma que “negar ao povo judeu o seu direito à autodeterminação, por exemplo afirmando que a existência do Estado de Israel é um empreendimento racista”. Rabah contesta: “Ora, mas este regime é supremacista, logo, racista, é um regime de Apartheid, assim definido pelos relatórios das mais importantes ONGs internacionais de direitos humanos, como Anistia Internacional e Human Rights Watch, para não falar da israelense B’Tselem, bem como os da ONU”.
De fato, Israel enfrenta denúncias de crimes internacionais por sua política em relação aos palestinos. A Human Rights Watch e a Anistia Internacional acusam o país de praticar apartheid, alegando dominação sistemática da população palestina por meio de leis e políticas discriminatórias. A Anistia também afirma que Israel comete genocídio em Gaza, citando bloqueios e ataques que resultam em mortes e condições de vida inumanas. O relator da ONU para os Territórios Ocupados, Michael Lynk, corrobora essas acusações, classificando as ações israelenses como apartheid.
A segunda passagem da definição da IHRA diz que é antissemitismo “aplicar uma dualidade de critérios, requerendo um comportamento que não se espera nem exige de qualquer outra nação democrática.” O presidente da Fepal também contesta: “Ora, mas qual país do mundo é um regime legalmente de Apartheid, além de Israel? E se existisse outro e o crítico falasse apenas do Apartheid israelense, esta crítica não teria legitimidade? E que outro país promove uma limpeza étnica metódica, sistemática e duradoura como a que Israel promove na Palestina ocupada?”
Vasco também aponta a hipocrisia da IHRA. “Não se sabe da existência de nenhuma nação moderna que tenha surgido a partir de um plano de invasão, colonização, genocídio e expulsão da maior parte da população autóctone, que, mesmo depois de sua oficialização pelas principais potências imperiais, continuou esmagando a ferro e fogo aquela população originária sob um regime tão ditatorial e fascista quanto foi o de Adolf Hitler”, analisa.
O terceiro ponto da definição da IHRA diz justamente que é antissemitismo “efetuar comparações entre a política israelense contemporânea e a dos nazistas”, o que também é rechaçado pelo presidente da Fepal, que lista algumas das práticas nazistas do Estado de Israel contra os palestinos. Ele afirma que praticar o nazismo “é o que Israel está fazendo, confinando palestinos em verdadeiros campos de concentração, os desumanizando ao pretexto de inferioridade e, de consequência, de não terem os mesmos direitos que os judeus, inclusive à terra que sempre lhes pertenceu”. E continua: “Os progroms hoje em curso na Cisjordânia são equiparáveis aos que sofriam os euro-judeus. As placas de veículos de cores diferentes (verdes para os não judeus) são como marcar os judeus no período nazista. Confinar os palestinos em Gaza não é diferente do Gueto de Varsóvia.”
Para Ualid Rabah, as intenções deste PL vão além do que pode ser percebido: “Acusar o lobby pró-israel, por exemplo, promovido no Brasil por organizações declaradamente sionistas, mais particularmente, como agora, de defesa de suas práticas genocidas em Gaza, será crime.” Também será crime, se o PL for aprovado, “acusar cidadãos judeus de serem mais leais a Israel, ou às alegadas prioridades dos judeus a nível mundial, do que aos interesses das suas próprias nações”, como diz também a definição da IHRA.
“Ou seja”, conclui Rabah: “mesmo o que parece inocente e coerente, se tornará arma para blindar Israel de críticas, blindando seus apoiadores em todo o mundo e, claro, ao contrário, encarcerando quem apoie os direitos nacionais, civis e humanitários do povo palestino.”
O site da Câmara dos Deputados, como é norma, disponibilizou uma consulta pública para qualquer cidadão opinar a respeito deste PL. Até o fechamento desta reportagem, 1.279 brasileiros (96% dos votantes) afirmaram DISCORDAR TOTALMENTE do PL, 38 (3%) disseram discordar na maior parte, 2 votaram por concordar na maior parte e apenas 17 (1%) declararam CONCORDAR TOTALMENTE com o PL. Os votos podem ser registrados nesta página.
Antissionismo não é antissemitismo: por que é essencial entender essa diferença
Nos debates contemporâneos, especialmente no contexto do conflito entre Israel e Palestina, é comum que as expressões antissionismo e antissemitismo sejam confundidas ou até mesmo usadas de forma intercambiável. Essa confusão, no entanto, é não apenas conceitualmente errada, mas também perigosa, pois obscurece o debate político e moral necessário sobre os direitos dos povos envolvidos — sobretudo os palestinos — e mina o combate real ao antissemitismo.
Antissemitismo: preconceito contra judeus
O antissemitismo é uma forma de preconceito histórico e persistente contra o povo judeu, que assume muitas faces: desde estereótipos e teorias conspiratórias até violência física, exclusão social e genocídios. A mais trágica manifestação desse ódio foi o Holocausto, perpetrado pelo regime nazista, que exterminou cerca de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. O antissemitismo é, portanto, um crime de ódio, uma expressão de racismo e discriminação, e deve ser combatido com firmeza e sem concessões.
Antissionismo: crítica política e histórica ao projeto sionista
Já o antissionismo é a crítica — ou rejeição — ao sionismo, o movimento político que surgiu no fim do século XIX com o objetivo de criar um Estado judeu na Palestina. O problema, segundo os críticos do sionismo, é que essa criação não ocorreu em um “deserto vazio”, como sugeriam algumas narrativas fundadoras, mas sim por meio de um processo de colonização e limpeza étnica que forçou a expulsão de centenas de milhares de palestinos de suas terras, vilas e cidades.
Esse processo teve seu marco mais violento na Nakba (ou “catástrofe”, em árabe), ocorrida em 1948, quando mais de 700 mil palestinos foram expulsos ou fugiram em meio à guerra que levou à fundação do Estado de Israel. Muitos nunca puderam retornar, e suas aldeias foram destruídas ou ocupadas. Desde então, o sionismo passou a ser compreendido por muitos analistas, acadêmicos e ativistas como um projeto colonial que privilegia um grupo étnico-religioso em detrimento de outro — em um território compartilhado.
Críticos do sionismo, como o historiador Ilan Pappé, autor de A Limpeza Étnica da Palestina (Ed. Sundermann, 2016), denunciam que o projeto sionista não visava coexistência, mas supremacia. Pappé sustenta, com base em documentos históricos e militares israelenses, que houve uma estratégia deliberada de expulsão da população árabe nativa.
Assim, o antissionismo é, na essência, uma crítica a esse projeto de dominação territorial e étnica. Ele questiona a legitimidade de um Estado que se define como “judeu” em uma terra onde havia — e ainda há — uma população nativa majoritariamente não judia. Também denuncia políticas atuais como:
– Ocupação militar de territórios palestinos;
– Expansão de assentamentos ilegais;
– Apartheid institucionalizado contra palestinos, como denunciado por organizações como Human Rights Watch e Amnistia Internacional.
Criticar Israel não é odiar judeus
É justamente aqui que mora a confusão — muitas vezes incentivada deliberadamente. Criticar o sionismo ou denunciar os crimes cometidos pelo Estado de Israel não é o mesmo que odiar judeus. O antissionismo, quando fundamentado em princípios de justiça e direitos humanos, é uma posição política legítima — e, em muitos casos, moralmente necessária.
Além disso, muitos judeus ao redor do mundo também são antissionistas, inclusive organizações como os Judeus Antissionistas da Diáspora e os Neturei Karta, grupo religioso ortodoxo que rejeita o Estado de Israel por princípios teológicos. Há também judeus progressistas e seculares que se opõem ao sionismo por razões éticas e políticas.
O perigo de igualar antissionismo a antissemitismo
Confundir — ou equiparar intencionalmente — antissionismo com antissemitismo é uma forma de deslegitimar a resistência palestina, silenciar críticas ao colonialismo e blindar Israel contra o escrutínio internacional. Pior: essa confusão enfraquece a luta contra o verdadeiro antissemitismo, pois transforma uma acusação grave e real em uma ferramenta de propaganda política.
Lutar contra o antissemitismo é uma obrigação ética universal. Mas isso não pode significar blindar um Estado contra críticas legítimas, especialmente quando essas críticas denunciam violações sistemáticas de direitos humanos e o sofrimento de um povo sob ocupação.
Crise de consciência: judaísmo em confronto com o genocídio em Gaza
Sob o som ininterrupto de bombardeios e a sombra de mais de 34 mil mortos, a Faixa de Gaza tornou-se não apenas o epicentro de uma tragédia humanitária, mas também o cenário de um intenso debate moral e político que reverbera nos quatro cantos do mundo — e, em especial, dentro da própria comunidade judaica. O que está em curso não é apenas uma guerra: é, para muitos intelectuais, como a historiadora Arlene Clemesha, um momento de profunda crise de consciência do judaísmo contemporâneo, diante do que ela classifica como genocídio praticado pelo Estado de Israel contra os palestinos.
Professora da Universidade de São Paulo e diretora do Centro de Estudos Palestinos da mesma instituição, Clemesha é uma das mais lúcidas e respeitadas vozes críticas à ideologia sionista — o projeto político de construção de um Estado judeu no Oriente Médio — e à ofensiva militar israelense em Gaza. Em entrevista recente, ela não mede palavras: “O Estado de Israel implementa uma série de políticas absolutamente contrárias aos palestinos, causando angústia e raiva”, afirma. E completa: “À medida que Israel se coloca como representante de todos os judeus do mundo — o que nem todos os judeus aceitam —, críticas ao Estado acabam transbordando para sentimentos antissemitas. Isso é um risco real.”
A fala sintetiza uma tensão que tem se agravado no debate público global: onde termina a crítica legítima ao sionismo e onde começa o antissemitismo? Clemesha defende que o combate necessário e inegociável ao preconceito contra judeus não pode ser instrumentalizado para silenciar denúncias de crimes cometidos por um Estado. O contexto atual exige, mais do que nunca, discernimento político e histórico.
O antissemitismo ainda existe — e é preciso nomeá-lo
Clemesha reconhece, por outro lado, que o antissemitismo não é um fantasma do passado. “Suas raízes estão ali. Não foram combatidas suficientemente porque o antissemitismo é um racismo, e o racismo existe de diversas formas”, afirma. A crítica central da autora, no entanto, está em não permitir que esse combate vire escudo para justificar políticas de opressão.
Esse ponto ganha ainda mais relevância diante das reações do governo israelense. Quando, em novembro de 2024, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandados de prisão contra o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, acusando-os de crimes de guerra em Gaza, o gabinete israelense classificou a decisão como “antissemita”. A retórica, nesse caso, buscou invalidar acusações graves com base em uma leitura politicamente instrumentalizada do antissemitismo.
Em paralelo, a África do Sul apresentou denúncia à Corte Internacional de Justiça acusando Israel de descumprir a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio. O processo ainda está em curso, mas o simbolismo é forte: uma nação marcada pelo apartheid levanta a voz contra o que considera um sistema semelhante sendo aplicado sobre outro povo.
Uma saída possível: um só Estado, dois povos
Ao contrário da ideia de dois Estados — uma solução hoje cada vez mais distante —, Clemesha defende que um único Estado laico, democrático e binacional, onde judeus e palestinos tenham os mesmos direitos, pode ser o caminho mais simples e justo para a paz. A proposta, embora vista como utópica por muitos, retoma ideais de igualdade e convivência que marcaram algumas correntes antissionistas judaicas desde o início do século XX.
“É irrealista no presente”, admite Clemesha, “mas pode ser o único caminho viável a longo prazo.”
A questão israelense-palestina não é um duelo entre civilizações, nem pode ser reduzida a slogans ideológicos. É um drama humano, histórico e político, que exige honestidade intelectual, sensibilidade ética e coragem moral. Antissemitismo e antissionismo não são a mesma coisa, e confundir os dois é, em última instância, desrespeitar tanto a dor do povo judeu quanto o sofrimento do povo palestino.
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