Salvador José Monteiro de Barros tomou um susto diante do caixa eletrônico. Tinha solicitado um simples extrato de sua conta do Banco do Brasil, como fazia corriqueiramente, mas recebeu, em vez disso, um papel informando que seu dinheiro estava bloqueado por ordem da 2ª Vara Cível de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Barros não entendeu nada. Engenheiro aposentado, hoje com 79 anos, ele morava em Petrópolis (RJ), a mais de mil km de Campo Grande, cidade que nunca visitou e onde não tem parentes.
Barros acionou sua advogada, que também foi pega de surpresa. Ela vasculhou o site do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul até encontrar informações sobre aquela ação judicial. Quando encontrou, não ficou menos confusa. Descobriu que um pecuarista chamado João Nascimento dos Santos havia processado Barros, afirmando que o engenheiro tinha comprado dele uma fazenda em Tangará da Serra (MT) e ainda não havia pago o valor combinado – no caso, seis parcelas que totalizavam 5,5 milhões de reais.
Era maio de 2017. A advogada recorreu do bloqueio, afirmando que aquilo não passava de uma fraude malfeita. Apresentou ao juiz a carteira de identidade de Barros, demonstrando a gritante diferença entre a assinatura que estava ali e a que constava na escritura da tal fazenda. “É de uma clarividência ímpar que uma terceira pessoa não identificada, usando meios fraudulentos para dar golpes, está usando o nome do suposto executado e o número de seus documentos de identidade na busca de obter vantagem ilícita”, ela argumentou. Imaginava que o golpe seria prontamente desmascarado, mas não foi o que aconteceu.
Em setembro, o juiz Paulo Afonso de Oliveira rejeitou o pedido da advogada, dando duas justificativas. Primeiro, afirmou que aquele tipo de recurso não admitia um exame grafotécnico. Segundo, disse que “a aparente diferença” entre as assinaturas “não leva à conclusão de que partiram de punhos distintos, mormente porque uma delas é por extenso e a outra não”. A advogada entrou então com um novo recurso. Novamente, o juiz negou, alegando dessa vez que o pedido havia sido feito fora do prazo determinado (como o processo corre sob sigilo, a piauí não conseguiu confirmar se a justificativa foi correta).
De mãos atadas, a advogada recorreu à segunda instância. O processo caiu nas mãos do desembargador Júlio Roberto Siqueira Cardoso, da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, que em maio de 2018 reconheceu os indícios de fraude e suspendeu a ação. Passado pouco mais de um mês, porém, Cardoso deu um giro de 180 graus: se retratou da decisão anterior e determinou o prosseguimento do caso na primeira instância. Repetiu o argumento de que a defesa havia perdido o prazo recursal e foi além: disse que a suspensão do processo poderia causar “danos irreparáveis” ao pecuarista.
A ação, com isso, retornou à mesa do juiz Oliveira. Quatro dias depois, às 17h57 de uma terça-feira, ele tomou a decisão final: determinou que João Santos recebesse os 5,5 milhões de reais do engenheiro. De nada valeu o laudo grafotécnico apresentado pela advogada, constatando que a assinatura de seu cliente havia sido falsificada. Ainda naquele dia, o dinheiro caiu na conta de Emmanuelle Silva, advogada que defendia o pecuarista.
Barros, privado das economias que havia acumulado durante toda a vida, abriu um boletim de ocorrência na Polícia Civil. Iniciou-se uma investigação, e a fraude, de tão escancarada, logo ruiu. Em poucas semanas, os policiais concluíram que a escritura da fazenda era falsa, assim como a assinatura atribuída ao engenheiro. Mas não só isso: João Santos, o pecuarista, não existia. Era um nome inventado, dono de uma carteira de identidade falsa.
Emmanuelle e três comparsas foram presos em julho de 2018, acusados de terem praticado estelionato contra Barros. A Polícia Civil e o Ministério Público de Mato Grosso do Sul resgataram os 5,5 milhões de reais e os devolveram ao engenheiro aposentado. O caso teve repercussão nacional. Confrontados com o escândalo, o juiz e o desembargador anularam suas decisões anteriores. “Fui enganado”, justificou-se Oliveira, na época.
Uma nova investigação da Polícia Federal mostra que talvez não tenha sido um engano.
“As atuações de tais magistrados [Paulo Oliveira e Júlio Cardoso] nos citados processos são, a nosso ver, tão absurdas que dificilmente se trataram de erros, mas sim de atuações conscientes de que estavam participando de um estelionato de mais de 5 milhões de reais”, escreveu o delegado da PF Marcos André Araújo Damato, de Campo Grande, em um relatório obtido pela piauí “A nosso ver, eles se aproveitaram de supostas falhas processuais da advogada de Salvador José [de Barros] para que suas decisões que permitiram o pagamento do referido valor pudessem ser, de alguma forma, justificadas.”
A investigação não se baseia só no comportamento errático dos juízes. Emmanuelle, a advogada que foi presa no esquema, é casada com Aldo Ferreira, juiz que, na época do ocorrido, atuava na 5ª Vara de Família de Campo Grande. A Polícia Civil e o Ministério Público descobriram, ainda em 2018, que, no dia anterior à entrega dos 5,5 milhões de reais a Emmanuelle, ela e o marido foram a uma agência do Santander e abriram duas contas correntes – uma no nome dela, outra no nome de Santos, o pecuarista fictício. O gerente do banco, em depoimento ao Ministério Público, contou que Aldo parecia afoito. Disse ter ouvido dele, na ocasião: “Eu precisava dessa conta um pouco rápido.” Foi atendido.
Aldo é amigo de Paulo Oliveira, o juiz responsável pelo caso (os dois chegaram a ter uma conta bancária conjunta, nos anos 2000). Assim que Oliveira repassou para Emmanuelle os 5,5 milhões de reais, o dinheiro rapidamente irrigou os círculos da magistratura campo-grandense. A advogada transferiu 1,5 milhão de reais para Santos (cuja conta era controlada por ela), 1,1 milhão para o marido, 275 mil para uma empresa do advogado Rodrigo Gonçalves Pimentel (filho do desembargador Sideni Pimentel) e 105 mil reais para o advogado Fábio Castro Leandro (filho do desembargador Paschoal Carmello Leandro).
Oliveira, juiz que disse ter sido “enganado” pelos estelionatários, também fez transações que chamaram atenção. Em 2 de abril de 2018, mesmo dia em que rejeitou um dos recursos do engenheiro de Petrópolis, agendou um saque de 100 mil reais de sua conta corrente para dali a três dias. Fez isso embora tivesse na conta, naquele momento, somente 39 mil reais. Para os investigadores, é um indício de que o juiz esperava receber, até o dia 5, um depósito gordo o suficiente para permitir o saque. (Lidar com dinheiro vivo era um hábito dele. No ano anterior, fez três saques que somavam, ao todo, 580 mil reais.)
Ainda em 2018, quando o processo ainda tramitava, Oliveira comprou por 100 mil reais metade das quotas de um avião Cessna 182 e aumentou, também em 100 mil reais, o valor declarado à Receita Federal por um apartamento em Campo Grande (movimento que, como apontam os investigadores, é comum entre criminosos que querem maquiar a entrada de dinheiro ilegal em suas contas). A polícia também encontrou um depósito de 700 mil reais feito em benefício de Oliveira pela Frizelo, frigorífico suspeito de ter corrompido Aldo, o juiz marido de Emmanuelle e amigo de Paulo Oliveira (Aldo sofreu aposentadoria compulsória em 2022 acusado de ter favorecido a empresa, entre outras irregularidades).
O desembargador Júlio Cardoso – que primeiro reconheceu a fraude, mas depois voltou atrás – também teve anos prósperos. Em 2018, pagou 1,4 milhão de reais por uma casa em um condomínio fechado de Campo Grande. Em 2022, comprou outro imóvel, dessa vez num condomínio à beira-mar em Camaçari (BA). Desembolsou 1,9 milhão de reais, dos quais 556 mil foram pagos em espécie. Essas transações vultosas, tanto de Cardoso quanto de Oliveira, são consideradas pela PF como indícios de que ambos receberam e lavaram dinheiro de propina – o que inclui parte dos milhões tirados do engenheiro.
Para completar, Rodrigo Pimentel e Fábio Leandro, filhos de respeitados desembargadores de Mato Grosso do Sul, também movimentaram cifras grandiosas. Pimentel é um advogado em ascendência: sua renda anual declarada ao Fisco cresceu 174 vezes em seis anos, segundo a PF. Era de 52,5 mil reais em 2017, passou para 3,3 milhões em 2018 e chegou a 9,2 milhões em 2022. Os investigadores detectaram que ele recebeu 21 milhões de reais da JBS num intervalo de nove meses, entre 2022 e 2023. A holding dos irmãos Batista tem negócios importantes no estado. Além de administrar três frigoríficos, disputa com a Paper Excellence o controle da Eldorado Celulose, empresa sediada em Três Lagoas (MS).
“Considerando que: 1) a JBS já esteve envolvida em esquema de corrupção conhecido nacionalmente, inclusive com pagamentos para autoridades de Mato Grosso do Sul, 2) os altos valores das citadas transferências para o escritório de Rodrigo Pimentel em curto período e 3) as suspeitas de envolvimento dele em esquema criminoso, o prosseguimento das investigações poderá esclarecer se há algum crime relacionado a tais pagamentos milionários”, escreveu o delegado Damato. Em nota, a assessoria da JBS negou que o dinheiro esteja ligado a atos de corrupção. “O escritório Pimentel & Mochi Advogados Associados já atuou em diversas ações da empresa relacionadas a inúmeros temas e recebeu honorários por isso, como qualquer outro escritório que atue em defesa da JBS.”
Leandro, por sua vez, fez 1.489 saques em contas próprias e de seu escritório de advocacia entre 2016 e 2019. Os saques, feitos sempre em valores fracionados, menores do que 50 mil reais, totalizam pouco mais de 3 milhões de reais. Para a PF, tanto o patrimônio quanto as transações bancárias dos dois filhos de desembargadores reforçam a suspeita de que eles atuavam como operadores de propina para magistrados de Mato Grosso do Sul. Ambos, segundo a polícia, embolsaram milhares de reais pagos por Emmanuelle Silva.
Paulo Oliveira e Júlio Cardoso estavam entre os alvos da operação Ultima Ratio, deflagrada pela Polícia Federal e a Receita Federal em 24 de outubro. O inquérito investiga crimes como venda de sentenças, lavagem de dinheiro, extorsão, falsificação e organização criminosa no Judiciário de Mato Grosso do Sul. Não houve prisões. Cinco desembargadores foram afastados por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), todos por suspeita de corrupção. Cardoso não está entre eles porque se aposentou em julho. Em sua casa, no entanto, os policiais encontraram 2,7 milhões de reais em dinheiro vivo. Oliveira, o juiz de primeira instância, foi afastado do cargo e está respondendo o processo em liberdade.
O inquérito enumera irregularidades de todo tipo. O desembargador Sideni Pimentel, pai do advogado Rodrigo Pimentel e um dos cinco afastados pelo STJ, é investigado por venda de sentença. A Polícia Federal suspeita de que ele tenha sido subornado por Jun Iti Hada, ex-prefeito de Bodoquena (MS), para votar a seu favor em um processo julgado em 2016.
Hada, antes de ser prefeito, foi médico legista. Em março de 2008, foi chamado para examinar a cena de um crime, no banheiro de um hotel da cidade. Um homem havia sido encontrado morto ali, com sinais claros de que se tratava de um assassinato: tinha duas marcas de tiro no peito, estava cercado por uma poça de sangue, e, além de cápsulas deflagradas, viam-se marcas de projéteis nas paredes. Hada, no entanto, contrariou a lógica e as evidências. Sequer fez a autópsia, e concluiu que a vítima havia morrido de infarto.
O episódio lhe rendeu uma denúncia na Justiça, mas Hada seguiu vida normal. Naquele mesmo ano, se elegeu prefeito pelo MDB. Em 2012, se reelegeu. Até que, em 2014, foi finalmente condenado no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul por falsa perícia. Para não ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa, o que o tornaria inelegível, Hada apresentou em 2016 um pedido de revisão criminal – recurso habitual em processos já encerrados. Seu advogado, na época, era Félix Jayme Nunes da Cunha, figura que hoje é investigada por suspeita de ter intermediado pagamentos de propinas a magistrados (em uma conversa recente obtida pela Polícia Federal, Cunha gabou-se dos lucros aferidos em um julgamento: “Vou faturar por 3×2… Pqp leilão danado kkkk… Cada um quer mais que o outro”).
Enquanto o pedido tramitava no Tribunal de Justiça, Cunha mandou uma mensagem de WhatsApp a Hada, assegurando: “Tá barato prefeito. Vale.” Os investigadores enxergam nisso uma provável referência a propina. O ex-prefeito perguntou ao advogado, então, se seria possível parcelar o valor em duas vezes. “Campanha [eleitoral] tá brava”, justificou. “Não dá, prefeito, é muita gente envolvida pra dar certo”, respondeu Cunha. Resignado, Hada se comprometeu a arrecadar o dinheiro combinado. Não fica claro na conversa quem receberia propina e qual seria o valor dela. Doze desembargadores julgaram o processo.
“Blzzz [beleza]. Vai ficar sem antecedentes [criminais]”, prosseguiu Cunha, em tom celebratório. O advogado então descreveu ao cliente o passo a passo do julgamento, que acabou ocorrendo em dezembro de 2016. Hada, como prometido, ficou sem antecedentes. Os desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça formaram maioria e absolveram-no. Um dos votos favoráveis partiu de Pimentel. O desembargador, segundo a Polícia Federal, é suspeito de ter negociado decisões com Cunha em mais de uma ocasião.
De tão evidente, a corrupção de juízes e desembargadores era alvo de comentários entre os próprios servidores do tribunal. “Ai não sei como o CNJ [Conselho Federal de Justiça] não pega, a Polícia Federal não pega”, comentou um deles, em conversa captada pela PF.
Sideni Pimentel, Jun Iti Hada, Félix da Cunha, Rodrigo Pimentel, Paulo Oliveira e Julio Cardoso foram procurados pela piauí, mas não se manifestaram até a publicação desta reportagem. Fábio Leandro, advogado que recebeu dinheiro de Emmanuelle Silva, negou ter atuado como intermediário de propina para juízes de Mato Grosso do Sul. “Não existe no inquérito qualquer relacionamento que não seja profissional com os magistrados.” Segundo ele, seu escritório costumava fazer muitos pagamentos e distribuição de lucros em dinheiro vivo, o que explica o número elevado de saques detectado pela polícia. Quanto ao dinheiro que recebeu de Emmanuelle, ele alega que o valor é referente à negociação de um imóvel.
Emmanuelle, por sua vez, também negou ter subornado juízes e criticou a investigação conduzida pela Polícia Federal e pela Receita Federal. “São incríveis os absurdos, os saltos mentais propostos pelos investigadores”, disse à piauí. “Eu vejo uma conduta reta dos magistrados”, prosseguiu, referindo-se às decisões tomadas por Paulo Oliveira e Julio Cardoso. “Na sequência, diante da prova de que João Nascimento [dos Santos] não era quem dizia ser, os magistrados rapidamente revisaram seus posicionamentos.”
A assessoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul afirmou, em nota, já ter convocado juízes substitutos para preencher as vagas dos desembargadores afastados. Os nomes foram aprovados em sessão especial na quarta-feira (30). A nota diz também que o tribunal “seguirá desenvolvendo seu papel de prestação jurisdicional célere e eficaz, convencido de que aos desembargadores, magistrados e servidores referidos será garantido o devido processo legal”.
Salvador José Monteiro de Barros tomou um susto diante do caixa eletrônico. Tinha solicitado um simples extrato de sua conta do Banco do Brasil, como fazia corriqueiramente, mas recebeu, em vez disso, um papel informando que seu dinheiro estava bloqueado por ordem da 2ª Vara Cível de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Barros não entendeu nada. Engenheiro aposentado, hoje com 79 anos, ele morava em Petrópolis (RJ), a mais de mil km de Campo Grande, cidade que nunca visitou e onde não tem parentes.
Barros acionou sua advogada, que também foi pega de surpresa. Ela vasculhou o site do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul até encontrar informações sobre aquela ação judicial. Quando encontrou, não ficou menos confusa. Descobriu que um pecuarista chamado João Nascimento dos Santos havia processado Barros, afirmando que o engenheiro tinha comprado dele uma fazenda em Tangará da Serra (MT) e ainda não havia pago o valor combinado – no caso, seis parcelas que totalizavam 5,5 milhões de reais.
Era maio de 2017. A advogada recorreu do bloqueio, afirmando que aquilo não passava de uma fraude malfeita. Apresentou ao juiz a carteira de identidade de Barros, demonstrando a gritante diferença entre a assinatura que estava ali e a que constava na escritura da tal fazenda. “É de uma clarividência ímpar que uma terceira pessoa não identificada, usando meios fraudulentos para dar golpes, está usando o nome do suposto executado e o número de seus documentos de identidade na busca de obter vantagem ilícita”, ela argumentou. Imaginava que o golpe seria prontamente desmascarado, mas não foi o que aconteceu.
Em setembro, o juiz Paulo Afonso de Oliveira rejeitou o pedido da advogada, dando duas justificativas. Primeiro, afirmou que aquele tipo de recurso não admitia um exame grafotécnico. Segundo, disse que “a aparente diferença” entre as assinaturas “não leva à conclusão de que partiram de punhos distintos, mormente porque uma delas é por extenso e a outra não”. A advogada entrou então com um novo recurso. Novamente, o juiz negou, alegando dessa vez que o pedido havia sido feito fora do prazo determinado (como o processo corre sob sigilo, a piauí não conseguiu confirmar se a justificativa foi correta).
De mãos atadas, a advogada recorreu à segunda instância. O processo caiu nas mãos do desembargador Júlio Roberto Siqueira Cardoso, da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, que em maio de 2018 reconheceu os indícios de fraude e suspendeu a ação. Passado pouco mais de um mês, porém, Cardoso deu um giro de 180 graus: se retratou da decisão anterior e determinou o prosseguimento do caso na primeira instância. Repetiu o argumento de que a defesa havia perdido o prazo recursal e foi além: disse que a suspensão do processo poderia causar “danos irreparáveis” ao pecuarista.
A ação, com isso, retornou à mesa do juiz Oliveira. Quatro dias depois, às 17h57 de uma terça-feira, ele tomou a decisão final: determinou que João Santos recebesse os 5,5 milhões de reais do engenheiro. De nada valeu o laudo grafotécnico apresentado pela advogada, constatando que a assinatura de seu cliente havia sido falsificada. Ainda naquele dia, o dinheiro caiu na conta de Emmanuelle Silva, advogada que defendia o pecuarista.
Barros, privado das economias que havia acumulado durante toda a vida, abriu um boletim de ocorrência na Polícia Civil. Iniciou-se uma investigação, e a fraude, de tão escancarada, logo ruiu. Em poucas semanas, os policiais concluíram que a escritura da fazenda era falsa, assim como a assinatura atribuída ao engenheiro. Mas não só isso: João Santos, o pecuarista, não existia. Era um nome inventado, dono de uma carteira de identidade falsa.
Emmanuelle e três comparsas foram presos em julho de 2018, acusados de terem praticado estelionato contra Barros. A Polícia Civil e o Ministério Público de Mato Grosso do Sul resgataram os 5,5 milhões de reais e os devolveram ao engenheiro aposentado. O caso teve repercussão nacional. Confrontados com o escândalo, o juiz e o desembargador anularam suas decisões anteriores. “Fui enganado”, justificou-se Oliveira, na época.
Uma nova investigação da Polícia Federal mostra que talvez não tenha sido um engano.
“As atuações de tais magistrados [Paulo Oliveira e Júlio Cardoso] nos citados processos são, a nosso ver, tão absurdas que dificilmente se trataram de erros, mas sim de atuações conscientes de que estavam participando de um estelionato de mais de 5 milhões de reais”, escreveu o delegado da PF Marcos André Araújo Damato, de Campo Grande, em um relatório obtido pela piauí “A nosso ver, eles se aproveitaram de supostas falhas processuais da advogada de Salvador José [de Barros] para que suas decisões que permitiram o pagamento do referido valor pudessem ser, de alguma forma, justificadas.”
A investigação não se baseia só no comportamento errático dos juízes. Emmanuelle, a advogada que foi presa no esquema, é casada com Aldo Ferreira, juiz que, na época do ocorrido, atuava na 5ª Vara de Família de Campo Grande. A Polícia Civil e o Ministério Público descobriram, ainda em 2018, que, no dia anterior à entrega dos 5,5 milhões de reais a Emmanuelle, ela e o marido foram a uma agência do Santander e abriram duas contas correntes – uma no nome dela, outra no nome de Santos, o pecuarista fictício. O gerente do banco, em depoimento ao Ministério Público, contou que Aldo parecia afoito. Disse ter ouvido dele, na ocasião: “Eu precisava dessa conta um pouco rápido.” Foi atendido.
Aldo é amigo de Paulo Oliveira, o juiz responsável pelo caso (os dois chegaram a ter uma conta bancária conjunta, nos anos 2000). Assim que Oliveira repassou para Emmanuelle os 5,5 milhões de reais, o dinheiro rapidamente irrigou os círculos da magistratura campo-grandense. A advogada transferiu 1,5 milhão de reais para Santos (cuja conta era controlada por ela), 1,1 milhão para o marido, 275 mil para uma empresa do advogado Rodrigo Gonçalves Pimentel (filho do desembargador Sideni Pimentel) e 105 mil reais para o advogado Fábio Castro Leandro (filho do desembargador Paschoal Carmello Leandro).
Oliveira, juiz que disse ter sido “enganado” pelos estelionatários, também fez transações que chamaram atenção. Em 2 de abril de 2018, mesmo dia em que rejeitou um dos recursos do engenheiro de Petrópolis, agendou um saque de 100 mil reais de sua conta corrente para dali a três dias. Fez isso embora tivesse na conta, naquele momento, somente 39 mil reais. Para os investigadores, é um indício de que o juiz esperava receber, até o dia 5, um depósito gordo o suficiente para permitir o saque. (Lidar com dinheiro vivo era um hábito dele. No ano anterior, fez três saques que somavam, ao todo, 580 mil reais.)
Ainda em 2018, quando o processo ainda tramitava, Oliveira comprou por 100 mil reais metade das quotas de um avião Cessna 182 e aumentou, também em 100 mil reais, o valor declarado à Receita Federal por um apartamento em Campo Grande (movimento que, como apontam os investigadores, é comum entre criminosos que querem maquiar a entrada de dinheiro ilegal em suas contas). A polícia também encontrou um depósito de 700 mil reais feito em benefício de Oliveira pela Frizelo, frigorífico suspeito de ter corrompido Aldo, o juiz marido de Emmanuelle e amigo de Paulo Oliveira (Aldo sofreu aposentadoria compulsória em 2022 acusado de ter favorecido a empresa, entre outras irregularidades).
O desembargador Júlio Cardoso – que primeiro reconheceu a fraude, mas depois voltou atrás – também teve anos prósperos. Em 2018, pagou 1,4 milhão de reais por uma casa em um condomínio fechado de Campo Grande. Em 2022, comprou outro imóvel, dessa vez num condomínio à beira-mar em Camaçari (BA). Desembolsou 1,9 milhão de reais, dos quais 556 mil foram pagos em espécie. Essas transações vultosas, tanto de Cardoso quanto de Oliveira, são consideradas pela PF como indícios de que ambos receberam e lavaram dinheiro de propina – o que inclui parte dos milhões tirados do engenheiro.
Para completar, Rodrigo Pimentel e Fábio Leandro, filhos de respeitados desembargadores de Mato Grosso do Sul, também movimentaram cifras grandiosas. Pimentel é um advogado em ascendência: sua renda anual declarada ao Fisco cresceu 174 vezes em seis anos, segundo a PF. Era de 52,5 mil reais em 2017, passou para 3,3 milhões em 2018 e chegou a 9,2 milhões em 2022. Os investigadores detectaram que ele recebeu 21 milhões de reais da JBS num intervalo de nove meses, entre 2022 e 2023. A holding dos irmãos Batista tem negócios importantes no estado. Além de administrar três frigoríficos, disputa com a Paper Excellence o controle da Eldorado Celulose, empresa sediada em Três Lagoas (MS).
“Considerando que: 1) a JBS já esteve envolvida em esquema de corrupção conhecido nacionalmente, inclusive com pagamentos para autoridades de Mato Grosso do Sul, 2) os altos valores das citadas transferências para o escritório de Rodrigo Pimentel em curto período e 3) as suspeitas de envolvimento dele em esquema criminoso, o prosseguimento das investigações poderá esclarecer se há algum crime relacionado a tais pagamentos milionários”, escreveu o delegado Damato. Em nota, a assessoria da JBS negou que o dinheiro esteja ligado a atos de corrupção. “O escritório Pimentel & Mochi Advogados Associados já atuou em diversas ações da empresa relacionadas a inúmeros temas e recebeu honorários por isso, como qualquer outro escritório que atue em defesa da JBS.”
Leandro, por sua vez, fez 1.489 saques em contas próprias e de seu escritório de advocacia entre 2016 e 2019. Os saques, feitos sempre em valores fracionados, menores do que 50 mil reais, totalizam pouco mais de 3 milhões de reais. Para a PF, tanto o patrimônio quanto as transações bancárias dos dois filhos de desembargadores reforçam a suspeita de que eles atuavam como operadores de propina para magistrados de Mato Grosso do Sul. Ambos, segundo a polícia, embolsaram milhares de reais pagos por Emmanuelle Silva.
Paulo Oliveira e Júlio Cardoso estavam entre os alvos da operação Ultima Ratio, deflagrada pela Polícia Federal e a Receita Federal em 24 de outubro. O inquérito investiga crimes como venda de sentenças, lavagem de dinheiro, extorsão, falsificação e organização criminosa no Judiciário de Mato Grosso do Sul. Não houve prisões. Cinco desembargadores foram afastados por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), todos por suspeita de corrupção. Cardoso não está entre eles porque se aposentou em julho. Em sua casa, no entanto, os policiais encontraram 2,7 milhões de reais em dinheiro vivo. Oliveira, o juiz de primeira instância, foi afastado do cargo e está respondendo o processo em liberdade.
O inquérito enumera irregularidades de todo tipo. O desembargador Sideni Pimentel, pai do advogado Rodrigo Pimentel e um dos cinco afastados pelo STJ, é investigado por venda de sentença. A Polícia Federal suspeita de que ele tenha sido subornado por Jun Iti Hada, ex-prefeito de Bodoquena (MS), para votar a seu favor em um processo julgado em 2016.
Hada, antes de ser prefeito, foi médico legista. Em março de 2008, foi chamado para examinar a cena de um crime, no banheiro de um hotel da cidade. Um homem havia sido encontrado morto ali, com sinais claros de que se tratava de um assassinato: tinha duas marcas de tiro no peito, estava cercado por uma poça de sangue, e, além de cápsulas deflagradas, viam-se marcas de projéteis nas paredes. Hada, no entanto, contrariou a lógica e as evidências. Sequer fez a autópsia, e concluiu que a vítima havia morrido de infarto.
O episódio lhe rendeu uma denúncia na Justiça, mas Hada seguiu vida normal. Naquele mesmo ano, se elegeu prefeito pelo MDB. Em 2012, se reelegeu. Até que, em 2014, foi finalmente condenado no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul por falsa perícia. Para não ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa, o que o tornaria inelegível, Hada apresentou em 2016 um pedido de revisão criminal – recurso habitual em processos já encerrados. Seu advogado, na época, era Félix Jayme Nunes da Cunha, figura que hoje é investigada por suspeita de ter intermediado pagamentos de propinas a magistrados (em uma conversa recente obtida pela Polícia Federal, Cunha gabou-se dos lucros aferidos em um julgamento: “Vou faturar por 3×2… Pqp leilão danado kkkk… Cada um quer mais que o outro”).
Enquanto o pedido tramitava no Tribunal de Justiça, Cunha mandou uma mensagem de WhatsApp a Hada, assegurando: “Tá barato prefeito. Vale.” Os investigadores enxergam nisso uma provável referência a propina. O ex-prefeito perguntou ao advogado, então, se seria possível parcelar o valor em duas vezes. “Campanha [eleitoral] tá brava”, justificou. “Não dá, prefeito, é muita gente envolvida pra dar certo”, respondeu Cunha. Resignado, Hada se comprometeu a arrecadar o dinheiro combinado. Não fica claro na conversa quem receberia propina e qual seria o valor dela. Doze desembargadores julgaram o processo.
“Blzzz [beleza]. Vai ficar sem antecedentes [criminais]”, prosseguiu Cunha, em tom celebratório. O advogado então descreveu ao cliente o passo a passo do julgamento, que acabou ocorrendo em dezembro de 2016. Hada, como prometido, ficou sem antecedentes. Os desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça formaram maioria e absolveram-no. Um dos votos favoráveis partiu de Pimentel. O desembargador, segundo a Polícia Federal, é suspeito de ter negociado decisões com Cunha em mais de uma ocasião.
De tão evidente, a corrupção de juízes e desembargadores era alvo de comentários entre os próprios servidores do tribunal. “Ai não sei como o CNJ [Conselho Federal de Justiça] não pega, a Polícia Federal não pega”, comentou um deles, em conversa captada pela PF.
Sideni Pimentel, Jun Iti Hada, Félix da Cunha, Rodrigo Pimentel, Paulo Oliveira e Julio Cardoso foram procurados pela piauí, mas não se manifestaram até a publicação desta reportagem. Fábio Leandro, advogado que recebeu dinheiro de Emmanuelle Silva, negou ter atuado como intermediário de propina para juízes de Mato Grosso do Sul. “Não existe no inquérito qualquer relacionamento que não seja profissional com os magistrados.” Segundo ele, seu escritório costumava fazer muitos pagamentos e distribuição de lucros em dinheiro vivo, o que explica o número elevado de saques detectado pela polícia. Quanto ao dinheiro que recebeu de Emmanuelle, ele alega que o valor é referente à negociação de um imóvel.
Emmanuelle, por sua vez, também negou ter subornado juízes e criticou a investigação conduzida pela Polícia Federal e pela Receita Federal. “São incríveis os absurdos, os saltos mentais propostos pelos investigadores”, disse à piauí. “Eu vejo uma conduta reta dos magistrados”, prosseguiu, referindo-se às decisões tomadas por Paulo Oliveira e Julio Cardoso. “Na sequência, diante da prova de que João Nascimento [dos Santos] não era quem dizia ser, os magistrados rapidamente revisaram seus posicionamentos.”
A assessoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul afirmou, em nota, já ter convocado juízes substitutos para preencher as vagas dos desembargadores afastados. Os nomes foram aprovados em sessão especial na quarta-feira (30). A nota diz também que o tribunal “seguirá desenvolvendo seu papel de prestação jurisdicional célere e eficaz, convencido de que aos desembargadores, magistrados e servidores referidos será garantido o devido processo legal”.
Salvador José Monteiro de Barros tomou um susto diante do caixa eletrônico. Tinha solicitado um simples extrato de sua conta do Banco do Brasil, como fazia corriqueiramente, mas recebeu, em vez disso, um papel informando que seu dinheiro estava bloqueado por ordem da 2ª Vara Cível de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Barros não entendeu nada. Engenheiro aposentado, hoje com 79 anos, ele morava em Petrópolis (RJ), a mais de mil km de Campo Grande, cidade que nunca visitou e onde não tem parentes.
Barros acionou sua advogada, que também foi pega de surpresa. Ela vasculhou o site do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul até encontrar informações sobre aquela ação judicial. Quando encontrou, não ficou menos confusa. Descobriu que um pecuarista chamado João Nascimento dos Santos havia processado Barros, afirmando que o engenheiro tinha comprado dele uma fazenda em Tangará da Serra (MT) e ainda não havia pago o valor combinado – no caso, seis parcelas que totalizavam 5,5 milhões de reais.
Era maio de 2017. A advogada recorreu do bloqueio, afirmando que aquilo não passava de uma fraude malfeita. Apresentou ao juiz a carteira de identidade de Barros, demonstrando a gritante diferença entre a assinatura que estava ali e a que constava na escritura da tal fazenda. “É de uma clarividência ímpar que uma terceira pessoa não identificada, usando meios fraudulentos para dar golpes, está usando o nome do suposto executado e o número de seus documentos de identidade na busca de obter vantagem ilícita”, ela argumentou. Imaginava que o golpe seria prontamente desmascarado, mas não foi o que aconteceu.
Em setembro, o juiz Paulo Afonso de Oliveira rejeitou o pedido da advogada, dando duas justificativas. Primeiro, afirmou que aquele tipo de recurso não admitia um exame grafotécnico. Segundo, disse que “a aparente diferença” entre as assinaturas “não leva à conclusão de que partiram de punhos distintos, mormente porque uma delas é por extenso e a outra não”. A advogada entrou então com um novo recurso. Novamente, o juiz negou, alegando dessa vez que o pedido havia sido feito fora do prazo determinado (como o processo corre sob sigilo, a piauí não conseguiu confirmar se a justificativa foi correta).
De mãos atadas, a advogada recorreu à segunda instância. O processo caiu nas mãos do desembargador Júlio Roberto Siqueira Cardoso, da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, que em maio de 2018 reconheceu os indícios de fraude e suspendeu a ação. Passado pouco mais de um mês, porém, Cardoso deu um giro de 180 graus: se retratou da decisão anterior e determinou o prosseguimento do caso na primeira instância. Repetiu o argumento de que a defesa havia perdido o prazo recursal e foi além: disse que a suspensão do processo poderia causar “danos irreparáveis” ao pecuarista.
A ação, com isso, retornou à mesa do juiz Oliveira. Quatro dias depois, às 17h57 de uma terça-feira, ele tomou a decisão final: determinou que João Santos recebesse os 5,5 milhões de reais do engenheiro. De nada valeu o laudo grafotécnico apresentado pela advogada, constatando que a assinatura de seu cliente havia sido falsificada. Ainda naquele dia, o dinheiro caiu na conta de Emmanuelle Silva, advogada que defendia o pecuarista.
Barros, privado das economias que havia acumulado durante toda a vida, abriu um boletim de ocorrência na Polícia Civil. Iniciou-se uma investigação, e a fraude, de tão escancarada, logo ruiu. Em poucas semanas, os policiais concluíram que a escritura da fazenda era falsa, assim como a assinatura atribuída ao engenheiro. Mas não só isso: João Santos, o pecuarista, não existia. Era um nome inventado, dono de uma carteira de identidade falsa.
Emmanuelle e três comparsas foram presos em julho de 2018, acusados de terem praticado estelionato contra Barros. A Polícia Civil e o Ministério Público de Mato Grosso do Sul resgataram os 5,5 milhões de reais e os devolveram ao engenheiro aposentado. O caso teve repercussão nacional. Confrontados com o escândalo, o juiz e o desembargador anularam suas decisões anteriores. “Fui enganado”, justificou-se Oliveira, na época.
Uma nova investigação da Polícia Federal mostra que talvez não tenha sido um engano.
“As atuações de tais magistrados [Paulo Oliveira e Júlio Cardoso] nos citados processos são, a nosso ver, tão absurdas que dificilmente se trataram de erros, mas sim de atuações conscientes de que estavam participando de um estelionato de mais de 5 milhões de reais”, escreveu o delegado da PF Marcos André Araújo Damato, de Campo Grande, em um relatório obtido pela piauí “A nosso ver, eles se aproveitaram de supostas falhas processuais da advogada de Salvador José [de Barros] para que suas decisões que permitiram o pagamento do referido valor pudessem ser, de alguma forma, justificadas.”
A investigação não se baseia só no comportamento errático dos juízes. Emmanuelle, a advogada que foi presa no esquema, é casada com Aldo Ferreira, juiz que, na época do ocorrido, atuava na 5ª Vara de Família de Campo Grande. A Polícia Civil e o Ministério Público descobriram, ainda em 2018, que, no dia anterior à entrega dos 5,5 milhões de reais a Emmanuelle, ela e o marido foram a uma agência do Santander e abriram duas contas correntes – uma no nome dela, outra no nome de Santos, o pecuarista fictício. O gerente do banco, em depoimento ao Ministério Público, contou que Aldo parecia afoito. Disse ter ouvido dele, na ocasião: “Eu precisava dessa conta um pouco rápido.” Foi atendido.
Aldo é amigo de Paulo Oliveira, o juiz responsável pelo caso (os dois chegaram a ter uma conta bancária conjunta, nos anos 2000). Assim que Oliveira repassou para Emmanuelle os 5,5 milhões de reais, o dinheiro rapidamente irrigou os círculos da magistratura campo-grandense. A advogada transferiu 1,5 milhão de reais para Santos (cuja conta era controlada por ela), 1,1 milhão para o marido, 275 mil para uma empresa do advogado Rodrigo Gonçalves Pimentel (filho do desembargador Sideni Pimentel) e 105 mil reais para o advogado Fábio Castro Leandro (filho do desembargador Paschoal Carmello Leandro).
Oliveira, juiz que disse ter sido “enganado” pelos estelionatários, também fez transações que chamaram atenção. Em 2 de abril de 2018, mesmo dia em que rejeitou um dos recursos do engenheiro de Petrópolis, agendou um saque de 100 mil reais de sua conta corrente para dali a três dias. Fez isso embora tivesse na conta, naquele momento, somente 39 mil reais. Para os investigadores, é um indício de que o juiz esperava receber, até o dia 5, um depósito gordo o suficiente para permitir o saque. (Lidar com dinheiro vivo era um hábito dele. No ano anterior, fez três saques que somavam, ao todo, 580 mil reais.)
Ainda em 2018, quando o processo ainda tramitava, Oliveira comprou por 100 mil reais metade das quotas de um avião Cessna 182 e aumentou, também em 100 mil reais, o valor declarado à Receita Federal por um apartamento em Campo Grande (movimento que, como apontam os investigadores, é comum entre criminosos que querem maquiar a entrada de dinheiro ilegal em suas contas). A polícia também encontrou um depósito de 700 mil reais feito em benefício de Oliveira pela Frizelo, frigorífico suspeito de ter corrompido Aldo, o juiz marido de Emmanuelle e amigo de Paulo Oliveira (Aldo sofreu aposentadoria compulsória em 2022 acusado de ter favorecido a empresa, entre outras irregularidades).
O desembargador Júlio Cardoso – que primeiro reconheceu a fraude, mas depois voltou atrás – também teve anos prósperos. Em 2018, pagou 1,4 milhão de reais por uma casa em um condomínio fechado de Campo Grande. Em 2022, comprou outro imóvel, dessa vez num condomínio à beira-mar em Camaçari (BA). Desembolsou 1,9 milhão de reais, dos quais 556 mil foram pagos em espécie. Essas transações vultosas, tanto de Cardoso quanto de Oliveira, são consideradas pela PF como indícios de que ambos receberam e lavaram dinheiro de propina – o que inclui parte dos milhões tirados do engenheiro.
Para completar, Rodrigo Pimentel e Fábio Leandro, filhos de respeitados desembargadores de Mato Grosso do Sul, também movimentaram cifras grandiosas. Pimentel é um advogado em ascendência: sua renda anual declarada ao Fisco cresceu 174 vezes em seis anos, segundo a PF. Era de 52,5 mil reais em 2017, passou para 3,3 milhões em 2018 e chegou a 9,2 milhões em 2022. Os investigadores detectaram que ele recebeu 21 milhões de reais da JBS num intervalo de nove meses, entre 2022 e 2023. A holding dos irmãos Batista tem negócios importantes no estado. Além de administrar três frigoríficos, disputa com a Paper Excellence o controle da Eldorado Celulose, empresa sediada em Três Lagoas (MS).
“Considerando que: 1) a JBS já esteve envolvida em esquema de corrupção conhecido nacionalmente, inclusive com pagamentos para autoridades de Mato Grosso do Sul, 2) os altos valores das citadas transferências para o escritório de Rodrigo Pimentel em curto período e 3) as suspeitas de envolvimento dele em esquema criminoso, o prosseguimento das investigações poderá esclarecer se há algum crime relacionado a tais pagamentos milionários”, escreveu o delegado Damato. Em nota, a assessoria da JBS negou que o dinheiro esteja ligado a atos de corrupção. “O escritório Pimentel & Mochi Advogados Associados já atuou em diversas ações da empresa relacionadas a inúmeros temas e recebeu honorários por isso, como qualquer outro escritório que atue em defesa da JBS.”
Leandro, por sua vez, fez 1.489 saques em contas próprias e de seu escritório de advocacia entre 2016 e 2019. Os saques, feitos sempre em valores fracionados, menores do que 50 mil reais, totalizam pouco mais de 3 milhões de reais. Para a PF, tanto o patrimônio quanto as transações bancárias dos dois filhos de desembargadores reforçam a suspeita de que eles atuavam como operadores de propina para magistrados de Mato Grosso do Sul. Ambos, segundo a polícia, embolsaram milhares de reais pagos por Emmanuelle Silva.
Paulo Oliveira e Júlio Cardoso estavam entre os alvos da operação Ultima Ratio, deflagrada pela Polícia Federal e a Receita Federal em 24 de outubro. O inquérito investiga crimes como venda de sentenças, lavagem de dinheiro, extorsão, falsificação e organização criminosa no Judiciário de Mato Grosso do Sul. Não houve prisões. Cinco desembargadores foram afastados por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), todos por suspeita de corrupção. Cardoso não está entre eles porque se aposentou em julho. Em sua casa, no entanto, os policiais encontraram 2,7 milhões de reais em dinheiro vivo. Oliveira, o juiz de primeira instância, foi afastado do cargo e está respondendo o processo em liberdade.
O inquérito enumera irregularidades de todo tipo. O desembargador Sideni Pimentel, pai do advogado Rodrigo Pimentel e um dos cinco afastados pelo STJ, é investigado por venda de sentença. A Polícia Federal suspeita de que ele tenha sido subornado por Jun Iti Hada, ex-prefeito de Bodoquena (MS), para votar a seu favor em um processo julgado em 2016.
Hada, antes de ser prefeito, foi médico legista. Em março de 2008, foi chamado para examinar a cena de um crime, no banheiro de um hotel da cidade. Um homem havia sido encontrado morto ali, com sinais claros de que se tratava de um assassinato: tinha duas marcas de tiro no peito, estava cercado por uma poça de sangue, e, além de cápsulas deflagradas, viam-se marcas de projéteis nas paredes. Hada, no entanto, contrariou a lógica e as evidências. Sequer fez a autópsia, e concluiu que a vítima havia morrido de infarto.
O episódio lhe rendeu uma denúncia na Justiça, mas Hada seguiu vida normal. Naquele mesmo ano, se elegeu prefeito pelo MDB. Em 2012, se reelegeu. Até que, em 2014, foi finalmente condenado no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul por falsa perícia. Para não ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa, o que o tornaria inelegível, Hada apresentou em 2016 um pedido de revisão criminal – recurso habitual em processos já encerrados. Seu advogado, na época, era Félix Jayme Nunes da Cunha, figura que hoje é investigada por suspeita de ter intermediado pagamentos de propinas a magistrados (em uma conversa recente obtida pela Polícia Federal, Cunha gabou-se dos lucros aferidos em um julgamento: “Vou faturar por 3×2… Pqp leilão danado kkkk… Cada um quer mais que o outro”).
Enquanto o pedido tramitava no Tribunal de Justiça, Cunha mandou uma mensagem de WhatsApp a Hada, assegurando: “Tá barato prefeito. Vale.” Os investigadores enxergam nisso uma provável referência a propina. O ex-prefeito perguntou ao advogado, então, se seria possível parcelar o valor em duas vezes. “Campanha [eleitoral] tá brava”, justificou. “Não dá, prefeito, é muita gente envolvida pra dar certo”, respondeu Cunha. Resignado, Hada se comprometeu a arrecadar o dinheiro combinado. Não fica claro na conversa quem receberia propina e qual seria o valor dela. Doze desembargadores julgaram o processo.
“Blzzz [beleza]. Vai ficar sem antecedentes [criminais]”, prosseguiu Cunha, em tom celebratório. O advogado então descreveu ao cliente o passo a passo do julgamento, que acabou ocorrendo em dezembro de 2016. Hada, como prometido, ficou sem antecedentes. Os desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça formaram maioria e absolveram-no. Um dos votos favoráveis partiu de Pimentel. O desembargador, segundo a Polícia Federal, é suspeito de ter negociado decisões com Cunha em mais de uma ocasião.
De tão evidente, a corrupção de juízes e desembargadores era alvo de comentários entre os próprios servidores do tribunal. “Ai não sei como o CNJ [Conselho Federal de Justiça] não pega, a Polícia Federal não pega”, comentou um deles, em conversa captada pela PF.
Sideni Pimentel, Jun Iti Hada, Félix da Cunha, Rodrigo Pimentel, Paulo Oliveira e Julio Cardoso foram procurados pela piauí, mas não se manifestaram até a publicação desta reportagem. Fábio Leandro, advogado que recebeu dinheiro de Emmanuelle Silva, negou ter atuado como intermediário de propina para juízes de Mato Grosso do Sul. “Não existe no inquérito qualquer relacionamento que não seja profissional com os magistrados.” Segundo ele, seu escritório costumava fazer muitos pagamentos e distribuição de lucros em dinheiro vivo, o que explica o número elevado de saques detectado pela polícia. Quanto ao dinheiro que recebeu de Emmanuelle, ele alega que o valor é referente à negociação de um imóvel.
Emmanuelle, por sua vez, também negou ter subornado juízes e criticou a investigação conduzida pela Polícia Federal e pela Receita Federal. “São incríveis os absurdos, os saltos mentais propostos pelos investigadores”, disse à piauí. “Eu vejo uma conduta reta dos magistrados”, prosseguiu, referindo-se às decisões tomadas por Paulo Oliveira e Julio Cardoso. “Na sequência, diante da prova de que João Nascimento [dos Santos] não era quem dizia ser, os magistrados rapidamente revisaram seus posicionamentos.”
A assessoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul afirmou, em nota, já ter convocado juízes substitutos para preencher as vagas dos desembargadores afastados. Os nomes foram aprovados em sessão especial na quarta-feira (30). A nota diz também que o tribunal “seguirá desenvolvendo seu papel de prestação jurisdicional célere e eficaz, convencido de que aos desembargadores, magistrados e servidores referidos será garantido o devido processo legal”.
Salvador José Monteiro de Barros tomou um susto diante do caixa eletrônico. Tinha solicitado um simples extrato de sua conta do Banco do Brasil, como fazia corriqueiramente, mas recebeu, em vez disso, um papel informando que seu dinheiro estava bloqueado por ordem da 2ª Vara Cível de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Barros não entendeu nada. Engenheiro aposentado, hoje com 79 anos, ele morava em Petrópolis (RJ), a mais de mil km de Campo Grande, cidade que nunca visitou e onde não tem parentes.
Barros acionou sua advogada, que também foi pega de surpresa. Ela vasculhou o site do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul até encontrar informações sobre aquela ação judicial. Quando encontrou, não ficou menos confusa. Descobriu que um pecuarista chamado João Nascimento dos Santos havia processado Barros, afirmando que o engenheiro tinha comprado dele uma fazenda em Tangará da Serra (MT) e ainda não havia pago o valor combinado – no caso, seis parcelas que totalizavam 5,5 milhões de reais.
Era maio de 2017. A advogada recorreu do bloqueio, afirmando que aquilo não passava de uma fraude malfeita. Apresentou ao juiz a carteira de identidade de Barros, demonstrando a gritante diferença entre a assinatura que estava ali e a que constava na escritura da tal fazenda. “É de uma clarividência ímpar que uma terceira pessoa não identificada, usando meios fraudulentos para dar golpes, está usando o nome do suposto executado e o número de seus documentos de identidade na busca de obter vantagem ilícita”, ela argumentou. Imaginava que o golpe seria prontamente desmascarado, mas não foi o que aconteceu.
Em setembro, o juiz Paulo Afonso de Oliveira rejeitou o pedido da advogada, dando duas justificativas. Primeiro, afirmou que aquele tipo de recurso não admitia um exame grafotécnico. Segundo, disse que “a aparente diferença” entre as assinaturas “não leva à conclusão de que partiram de punhos distintos, mormente porque uma delas é por extenso e a outra não”. A advogada entrou então com um novo recurso. Novamente, o juiz negou, alegando dessa vez que o pedido havia sido feito fora do prazo determinado (como o processo corre sob sigilo, a piauí não conseguiu confirmar se a justificativa foi correta).
De mãos atadas, a advogada recorreu à segunda instância. O processo caiu nas mãos do desembargador Júlio Roberto Siqueira Cardoso, da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, que em maio de 2018 reconheceu os indícios de fraude e suspendeu a ação. Passado pouco mais de um mês, porém, Cardoso deu um giro de 180 graus: se retratou da decisão anterior e determinou o prosseguimento do caso na primeira instância. Repetiu o argumento de que a defesa havia perdido o prazo recursal e foi além: disse que a suspensão do processo poderia causar “danos irreparáveis” ao pecuarista.
A ação, com isso, retornou à mesa do juiz Oliveira. Quatro dias depois, às 17h57 de uma terça-feira, ele tomou a decisão final: determinou que João Santos recebesse os 5,5 milhões de reais do engenheiro. De nada valeu o laudo grafotécnico apresentado pela advogada, constatando que a assinatura de seu cliente havia sido falsificada. Ainda naquele dia, o dinheiro caiu na conta de Emmanuelle Silva, advogada que defendia o pecuarista.
Barros, privado das economias que havia acumulado durante toda a vida, abriu um boletim de ocorrência na Polícia Civil. Iniciou-se uma investigação, e a fraude, de tão escancarada, logo ruiu. Em poucas semanas, os policiais concluíram que a escritura da fazenda era falsa, assim como a assinatura atribuída ao engenheiro. Mas não só isso: João Santos, o pecuarista, não existia. Era um nome inventado, dono de uma carteira de identidade falsa.
Emmanuelle e três comparsas foram presos em julho de 2018, acusados de terem praticado estelionato contra Barros. A Polícia Civil e o Ministério Público de Mato Grosso do Sul resgataram os 5,5 milhões de reais e os devolveram ao engenheiro aposentado. O caso teve repercussão nacional. Confrontados com o escândalo, o juiz e o desembargador anularam suas decisões anteriores. “Fui enganado”, justificou-se Oliveira, na época.
Uma nova investigação da Polícia Federal mostra que talvez não tenha sido um engano.
“As atuações de tais magistrados [Paulo Oliveira e Júlio Cardoso] nos citados processos são, a nosso ver, tão absurdas que dificilmente se trataram de erros, mas sim de atuações conscientes de que estavam participando de um estelionato de mais de 5 milhões de reais”, escreveu o delegado da PF Marcos André Araújo Damato, de Campo Grande, em um relatório obtido pela piauí “A nosso ver, eles se aproveitaram de supostas falhas processuais da advogada de Salvador José [de Barros] para que suas decisões que permitiram o pagamento do referido valor pudessem ser, de alguma forma, justificadas.”
A investigação não se baseia só no comportamento errático dos juízes. Emmanuelle, a advogada que foi presa no esquema, é casada com Aldo Ferreira, juiz que, na época do ocorrido, atuava na 5ª Vara de Família de Campo Grande. A Polícia Civil e o Ministério Público descobriram, ainda em 2018, que, no dia anterior à entrega dos 5,5 milhões de reais a Emmanuelle, ela e o marido foram a uma agência do Santander e abriram duas contas correntes – uma no nome dela, outra no nome de Santos, o pecuarista fictício. O gerente do banco, em depoimento ao Ministério Público, contou que Aldo parecia afoito. Disse ter ouvido dele, na ocasião: “Eu precisava dessa conta um pouco rápido.” Foi atendido.
Aldo é amigo de Paulo Oliveira, o juiz responsável pelo caso (os dois chegaram a ter uma conta bancária conjunta, nos anos 2000). Assim que Oliveira repassou para Emmanuelle os 5,5 milhões de reais, o dinheiro rapidamente irrigou os círculos da magistratura campo-grandense. A advogada transferiu 1,5 milhão de reais para Santos (cuja conta era controlada por ela), 1,1 milhão para o marido, 275 mil para uma empresa do advogado Rodrigo Gonçalves Pimentel (filho do desembargador Sideni Pimentel) e 105 mil reais para o advogado Fábio Castro Leandro (filho do desembargador Paschoal Carmello Leandro).
Oliveira, juiz que disse ter sido “enganado” pelos estelionatários, também fez transações que chamaram atenção. Em 2 de abril de 2018, mesmo dia em que rejeitou um dos recursos do engenheiro de Petrópolis, agendou um saque de 100 mil reais de sua conta corrente para dali a três dias. Fez isso embora tivesse na conta, naquele momento, somente 39 mil reais. Para os investigadores, é um indício de que o juiz esperava receber, até o dia 5, um depósito gordo o suficiente para permitir o saque. (Lidar com dinheiro vivo era um hábito dele. No ano anterior, fez três saques que somavam, ao todo, 580 mil reais.)
Ainda em 2018, quando o processo ainda tramitava, Oliveira comprou por 100 mil reais metade das quotas de um avião Cessna 182 e aumentou, também em 100 mil reais, o valor declarado à Receita Federal por um apartamento em Campo Grande (movimento que, como apontam os investigadores, é comum entre criminosos que querem maquiar a entrada de dinheiro ilegal em suas contas). A polícia também encontrou um depósito de 700 mil reais feito em benefício de Oliveira pela Frizelo, frigorífico suspeito de ter corrompido Aldo, o juiz marido de Emmanuelle e amigo de Paulo Oliveira (Aldo sofreu aposentadoria compulsória em 2022 acusado de ter favorecido a empresa, entre outras irregularidades).
O desembargador Júlio Cardoso – que primeiro reconheceu a fraude, mas depois voltou atrás – também teve anos prósperos. Em 2018, pagou 1,4 milhão de reais por uma casa em um condomínio fechado de Campo Grande. Em 2022, comprou outro imóvel, dessa vez num condomínio à beira-mar em Camaçari (BA). Desembolsou 1,9 milhão de reais, dos quais 556 mil foram pagos em espécie. Essas transações vultosas, tanto de Cardoso quanto de Oliveira, são consideradas pela PF como indícios de que ambos receberam e lavaram dinheiro de propina – o que inclui parte dos milhões tirados do engenheiro.
Para completar, Rodrigo Pimentel e Fábio Leandro, filhos de respeitados desembargadores de Mato Grosso do Sul, também movimentaram cifras grandiosas. Pimentel é um advogado em ascendência: sua renda anual declarada ao Fisco cresceu 174 vezes em seis anos, segundo a PF. Era de 52,5 mil reais em 2017, passou para 3,3 milhões em 2018 e chegou a 9,2 milhões em 2022. Os investigadores detectaram que ele recebeu 21 milhões de reais da JBS num intervalo de nove meses, entre 2022 e 2023. A holding dos irmãos Batista tem negócios importantes no estado. Além de administrar três frigoríficos, disputa com a Paper Excellence o controle da Eldorado Celulose, empresa sediada em Três Lagoas (MS).
“Considerando que: 1) a JBS já esteve envolvida em esquema de corrupção conhecido nacionalmente, inclusive com pagamentos para autoridades de Mato Grosso do Sul, 2) os altos valores das citadas transferências para o escritório de Rodrigo Pimentel em curto período e 3) as suspeitas de envolvimento dele em esquema criminoso, o prosseguimento das investigações poderá esclarecer se há algum crime relacionado a tais pagamentos milionários”, escreveu o delegado Damato. Em nota, a assessoria da JBS negou que o dinheiro esteja ligado a atos de corrupção. “O escritório Pimentel & Mochi Advogados Associados já atuou em diversas ações da empresa relacionadas a inúmeros temas e recebeu honorários por isso, como qualquer outro escritório que atue em defesa da JBS.”
Leandro, por sua vez, fez 1.489 saques em contas próprias e de seu escritório de advocacia entre 2016 e 2019. Os saques, feitos sempre em valores fracionados, menores do que 50 mil reais, totalizam pouco mais de 3 milhões de reais. Para a PF, tanto o patrimônio quanto as transações bancárias dos dois filhos de desembargadores reforçam a suspeita de que eles atuavam como operadores de propina para magistrados de Mato Grosso do Sul. Ambos, segundo a polícia, embolsaram milhares de reais pagos por Emmanuelle Silva.
Paulo Oliveira e Júlio Cardoso estavam entre os alvos da operação Ultima Ratio, deflagrada pela Polícia Federal e a Receita Federal em 24 de outubro. O inquérito investiga crimes como venda de sentenças, lavagem de dinheiro, extorsão, falsificação e organização criminosa no Judiciário de Mato Grosso do Sul. Não houve prisões. Cinco desembargadores foram afastados por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), todos por suspeita de corrupção. Cardoso não está entre eles porque se aposentou em julho. Em sua casa, no entanto, os policiais encontraram 2,7 milhões de reais em dinheiro vivo. Oliveira, o juiz de primeira instância, foi afastado do cargo e está respondendo o processo em liberdade.
O inquérito enumera irregularidades de todo tipo. O desembargador Sideni Pimentel, pai do advogado Rodrigo Pimentel e um dos cinco afastados pelo STJ, é investigado por venda de sentença. A Polícia Federal suspeita de que ele tenha sido subornado por Jun Iti Hada, ex-prefeito de Bodoquena (MS), para votar a seu favor em um processo julgado em 2016.
Hada, antes de ser prefeito, foi médico legista. Em março de 2008, foi chamado para examinar a cena de um crime, no banheiro de um hotel da cidade. Um homem havia sido encontrado morto ali, com sinais claros de que se tratava de um assassinato: tinha duas marcas de tiro no peito, estava cercado por uma poça de sangue, e, além de cápsulas deflagradas, viam-se marcas de projéteis nas paredes. Hada, no entanto, contrariou a lógica e as evidências. Sequer fez a autópsia, e concluiu que a vítima havia morrido de infarto.
O episódio lhe rendeu uma denúncia na Justiça, mas Hada seguiu vida normal. Naquele mesmo ano, se elegeu prefeito pelo MDB. Em 2012, se reelegeu. Até que, em 2014, foi finalmente condenado no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul por falsa perícia. Para não ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa, o que o tornaria inelegível, Hada apresentou em 2016 um pedido de revisão criminal – recurso habitual em processos já encerrados. Seu advogado, na época, era Félix Jayme Nunes da Cunha, figura que hoje é investigada por suspeita de ter intermediado pagamentos de propinas a magistrados (em uma conversa recente obtida pela Polícia Federal, Cunha gabou-se dos lucros aferidos em um julgamento: “Vou faturar por 3×2… Pqp leilão danado kkkk… Cada um quer mais que o outro”).
Enquanto o pedido tramitava no Tribunal de Justiça, Cunha mandou uma mensagem de WhatsApp a Hada, assegurando: “Tá barato prefeito. Vale.” Os investigadores enxergam nisso uma provável referência a propina. O ex-prefeito perguntou ao advogado, então, se seria possível parcelar o valor em duas vezes. “Campanha [eleitoral] tá brava”, justificou. “Não dá, prefeito, é muita gente envolvida pra dar certo”, respondeu Cunha. Resignado, Hada se comprometeu a arrecadar o dinheiro combinado. Não fica claro na conversa quem receberia propina e qual seria o valor dela. Doze desembargadores julgaram o processo.
“Blzzz [beleza]. Vai ficar sem antecedentes [criminais]”, prosseguiu Cunha, em tom celebratório. O advogado então descreveu ao cliente o passo a passo do julgamento, que acabou ocorrendo em dezembro de 2016. Hada, como prometido, ficou sem antecedentes. Os desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça formaram maioria e absolveram-no. Um dos votos favoráveis partiu de Pimentel. O desembargador, segundo a Polícia Federal, é suspeito de ter negociado decisões com Cunha em mais de uma ocasião.
De tão evidente, a corrupção de juízes e desembargadores era alvo de comentários entre os próprios servidores do tribunal. “Ai não sei como o CNJ [Conselho Federal de Justiça] não pega, a Polícia Federal não pega”, comentou um deles, em conversa captada pela PF.
Sideni Pimentel, Jun Iti Hada, Félix da Cunha, Rodrigo Pimentel, Paulo Oliveira e Julio Cardoso foram procurados pela piauí, mas não se manifestaram até a publicação desta reportagem. Fábio Leandro, advogado que recebeu dinheiro de Emmanuelle Silva, negou ter atuado como intermediário de propina para juízes de Mato Grosso do Sul. “Não existe no inquérito qualquer relacionamento que não seja profissional com os magistrados.” Segundo ele, seu escritório costumava fazer muitos pagamentos e distribuição de lucros em dinheiro vivo, o que explica o número elevado de saques detectado pela polícia. Quanto ao dinheiro que recebeu de Emmanuelle, ele alega que o valor é referente à negociação de um imóvel.
Emmanuelle, por sua vez, também negou ter subornado juízes e criticou a investigação conduzida pela Polícia Federal e pela Receita Federal. “São incríveis os absurdos, os saltos mentais propostos pelos investigadores”, disse à piauí. “Eu vejo uma conduta reta dos magistrados”, prosseguiu, referindo-se às decisões tomadas por Paulo Oliveira e Julio Cardoso. “Na sequência, diante da prova de que João Nascimento [dos Santos] não era quem dizia ser, os magistrados rapidamente revisaram seus posicionamentos.”
A assessoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul afirmou, em nota, já ter convocado juízes substitutos para preencher as vagas dos desembargadores afastados. Os nomes foram aprovados em sessão especial na quarta-feira (30). A nota diz também que o tribunal “seguirá desenvolvendo seu papel de prestação jurisdicional célere e eficaz, convencido de que aos desembargadores, magistrados e servidores referidos será garantido o devido processo legal”.
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