Congelar preços nos supermercados, sobretaxar produtos importados, tornar permanentes subsídios desenhados para serem provisórios.
Todas propostas testadas no passado na América Latina, com resultados considerados desastrosos por seus críticos — e lançadas pelas campanhas ou da democrata Kamala Harris ou do republicano Donald Trump na disputa pela Presidência dos Estados Unidos.
As ideias são algumas das que têm circulado neste ciclo eleitoral e chamado atenção por agradarem eleitores enquanto causam arrepios em muitos economistas.
O populismo se infiltrou no debate econômico nestas eleições americanas, dizem os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, como mais um sintoma da polarização que rachou os EUA e tem produzido mudanças profundas no país mais rico do mundo.
Congelamento de preços e a memória dos ‘fiscais do Sarney’
“Existe uma tendência de latino-americanização dos programas dos dois candidatos”, comenta o professor titular aposentado da PUC-RJ e economista-chefe da Genial Investimentos José Márcio Camargo.
Uma das propostas que chamam atenção nesse sentido na campanha da vice-presidente Kamala Harris é o controle de preços para combater aumentos abusivos.
Em um comício na Carolina do Norte em 16 de agosto, ela disse que trabalharia para aprovar a primeira medida a nível federal para penalizar empresas que, por exemplo, se comportassem de forma “oportunista” em momentos de crise, como desastres naturais, para subir preços e engordar os lucros.
Popular entre eleitores, a medida encontra resistência de muitos economistas.
“Controle de preços é algo que foi testado inúmeras vezes em inúmeros lugares e nunca deu certo”, opina Livio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV) e sócio da BRCG Consultoria.
“Na prática, você pode conseguir fazer isso por um curto período, mas, à medida que o tempo passa, os agentes econômicos e os mecanismos de demanda se reorganizam de forma a driblar os controles”, ele completa.
Em diferentes experiências, o controle de preços produziu distorções como escassez de produtos e o surgimento de mercados paralelos.
Isso aconteceu no Brasil em 1986, no governo de José Sarney, com o Plano Cruzado, que entre outras medidas para tentar conter a hiperinflação instituiu o tabelamento de preços nos supermercados.
Houve inclusive incentivo para que o cidadão comum monitorasse os estabelecimentos para conferir se os preços estavam seguindo a tabela do governo — figuras que ficaram conhecidas como “fiscais do Sarney”.
O resultado foram prateleiras vazias, filas nos supermercados e racionamento de produtos.
Depois de 9 meses, os preços foram descongelados e o Cruzado ganhou um substituto, mas a inflação só foi de fato controlada com a chegada do Plano Real, lançado em 1994.
Os próprios americanos chegaram a experimentar com o controle de preços nos anos 1970.
“O Nixon já tentou fazer isso e não deu certo”, diz José Márcio Camargo, que justamente nesse período fazia doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Ele chegou ao país em 1973, ano em que o republicano Richard Nixon, em início de um segundo mandato, implementava uma segunda onda de congelamento de preços.
Uma reportagem da revista Time de julho daquele ano dá dimensão dos impactos: criadores de galinhas estavam matando pintinhos afogados e pecuaristas, abatendo o gado sob argumento que não conseguiam vender seus produtos aos preços exigidos pelo governo sem prejuízo.
O tarifaço de Trump
Outra medida fracassada do chamado “choque Nixon” foi a instituição de uma tarifa de 10% sobre todo produto estrangeiro que entrasse nos EUA.
Trump propõe uma versão com anabolizantes dessa prática, com aumento de tarifas de 10% a 20% para todos os parceiros comerciais do país, de 60% para produtos da China e sobretaxas de mais de 100% em circunstâncias específicas.
O republicano argumenta que o tarifaço incentivaria as empresas a produzirem mais nos Estados Unidos e a criar empregos no país. A maioria dos especialistas discorda.
“Ou vira inflação ou vira redução de demanda”, avalia o professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e economista-chefe do Banco Fator José Francisco de Lima Gonçalves, referindo-se aos possíveis efeitos.
Ele explica com um exemplo ilustrativo da China. Os americanos ou não fabricam ou têm capacidade reduzida para produzir o que importam do país asiático.
Se, de uma hora para outra, esses importados forem sobretaxados, o americano ou vai topar pagar mais caro para ter acesso ao produto de qualquer forma (o que os economistas chamam de demanda pouco elástica), processo que alimenta a inflação, ou vai deixar de comprar porque acha que ele ficou caro demais, com impacto na redução do consumo.
A medida foi a única rejeitada por unanimidade por 39 economistas consultados pelo jornal americano The Wall Street Journal, que levou uma lista das propostas polêmicas que têm circulado nas campanhas para especialistas e para um grupo de 750 eleitores dos dois partidos.
100% dos economistas disseram se opor ao protecionismo tarifário. Já entre os americanos comuns, metade declarou ver a medida com bons olhos.
A proposta de controle de preços de Kamala também reforça o abismo entre economistas e eleitores: só 13% dos especialistas afirmaram ser a favor, enquanto 72% dos cidadãos comuns responderam da mesma forma.
Subsídios, isenções e deportação em massa
Outra proposta de Trump que também divide economistas e leigos é a de tornar permanente uma série de cortes de impostos que ele instituiu em 2017, quando era presidente, e que deveriam ser temporários, com previsão para perderem a validade em 2025.
Esse é um roteiro bastante conhecido no Brasil: benefícios fiscais que nascem com data de validade e acabam se perpetuando indefinidamente.
Um exemplo ilustrativo é a desoneração da folha de pagamentos, instituída em 2011, durante o governo Dilma Rousseff, com caráter provisório, mas que acabou sendo ampliada e segue em vigor mais de uma década depois.
“Eles (Americanos) não estão muito acostumados com isso porque não é da natureza do debate político deles de curto prazo. A gente (o Brasil) é catedrático nesse tema, infelizmente”, diz Livio Ribeiro.
Além da perenização do Tax Cuts and Jobs Act, o pacote lançado por Trump em 2017 e que deveria se encerrar em 2025, o republicano tem uma série de outras propostas que preveem subsídios e isenções, ressalta o economista Steven Kamin, pesquisador sênior do centro de pesquisa American Enterprise Institute.
Entre elas está a de isentar de impostos as gorjetas de quem trabalha no setor de serviços, ideia que acabou sendo também abraçada pela campanha de Kamala Harris.
Além do custo para as contas do governo, economistas avaliam que a medida pode distorcer o mercado de trabalho, já que beneficiaria uma quantidade pequena de trabalhadores de baixa renda.
Outra proposta que tem feito sucesso com parte do eleitorado e que Kamin considera que pode produzir grande impacto negativo na economia americana é a promessa de Trump de deportar milhões de imigrantes sem documentos.
A mão de obra dos imigrantes, ele argumenta, é hoje a base de setores como a construção e diversos segmentos de serviços, especialmente os que pagam menores salários. A redução dessa força de trabalho, além de criar um problema para essas indústrias no curto prazo, alimentaria mais inflação.
Por que agora?
Para José Márcio Camargo, o populismo que avança nos EUA e penetrou o debate eleitoral sobre economia tem suas raízes nas mudanças disruptivas que a globalização levou ao país.
A maior integração econômica e tecnológica com o restante do mundo provocou uma mudança profunda na estrutura da economia americana, reduzindo o peso da indústria e fortalecendo o setor de serviços, que hoje responde por 70% do Produto Interno Bruto (PIB) americano pelo lado da oferta.
“A questão é que, nessa transição, a demanda por trabalho pouco qualificado diminui”, ele completa, referindo-se ao desemprego gerado pela transferência de parte da produção para outras regiões do planeta.
Esse foi um processo, aliás, que não se restringiu aos EUA, mas que se repetiu em outros países ricos, gerando ressentimentos parecidos em determinados grupos de eleitores e discursos políticos que se encaixam na definição de populistas, oferecendo soluções fáceis para questões complexas, que geralmente agradam as grandes massas, mas não resolvem os problemas.
“Acho que o populismo tem se tornado uma força cada vez mais importante na política americana”, diz Kamin.
“A América Latina tem mais história com movimentos populistas, está mais familiarizada com eles. Os EUA menos…mas estamos chegando lá.”
Nova fase do liberalismo americano?
Na disputa mais apertada pela Casa Branca da história recente dos EUA, as propostas populistas para a economia ganharam espaço no debate eleitoral enquanto a retórica do Estado mínimo, que nas últimas décadas esteve muito associada à imagem que o mundo tinha do liberalismo americano, ficou em segundo plano.
Uma evidência nesse sentido, aponta Kamin, é o fato de que as agendas tanto de Trump quanto de Kamala preveem aumento dos gastos do governo e expansão do endividamento público.
“A política fiscal do Trump vai levar a déficits maiores, mas nenhum dos dois candidatos está de nenhuma forma prometendo consolidação fiscal”, avalia o especialista, que teve uma longa carreira no Federal Reserve (FED), o banco central americano.
Isso representa uma quebra da tradição mais recente do debate econômico no país e, para os economistas ouvidos pela reportagem, tem raízes em questões internas dos EUA, mas também ecoa novos fenômenos globais, como a tendência de aumento do papel do Estado.
A retórica do “ultraliberalismo” – ligada à ideia de Estado mínimo, de que o mercado é capaz de se autorregular — perdeu força a partir das crises financeiras que estouraram em 2008/2009 nos EUA e 2011/2012 na Europa, diz Livio Ribeiro, do Ibre-FGV e da BRCG Consultoria. Desde então, ela vem dando lugar à ideia de que um Estado mais forte pode ser desejável, que ganhou ainda mais fôlego com a pandemia de covid-19.
“Isso tem sido visto no mundo inteiro, não é só no caso americano, né? Hoje em dia a gente tem um fiscal mais frouxo no mundo, mais permissivo, com dívidas mais altas, maior participação do Estado – e um monetário que está ali tentando se equilibrar (para controlar o aumento de inflação)”, avalia.
Congelar preços nos supermercados, sobretaxar produtos importados, tornar permanentes subsídios desenhados para serem provisórios.
Todas propostas testadas no passado na América Latina, com resultados considerados desastrosos por seus críticos — e lançadas pelas campanhas ou da democrata Kamala Harris ou do republicano Donald Trump na disputa pela Presidência dos Estados Unidos.
As ideias são algumas das que têm circulado neste ciclo eleitoral e chamado atenção por agradarem eleitores enquanto causam arrepios em muitos economistas.
O populismo se infiltrou no debate econômico nestas eleições americanas, dizem os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, como mais um sintoma da polarização que rachou os EUA e tem produzido mudanças profundas no país mais rico do mundo.
Congelamento de preços e a memória dos ‘fiscais do Sarney’
“Existe uma tendência de latino-americanização dos programas dos dois candidatos”, comenta o professor titular aposentado da PUC-RJ e economista-chefe da Genial Investimentos José Márcio Camargo.
Uma das propostas que chamam atenção nesse sentido na campanha da vice-presidente Kamala Harris é o controle de preços para combater aumentos abusivos.
Em um comício na Carolina do Norte em 16 de agosto, ela disse que trabalharia para aprovar a primeira medida a nível federal para penalizar empresas que, por exemplo, se comportassem de forma “oportunista” em momentos de crise, como desastres naturais, para subir preços e engordar os lucros.
Popular entre eleitores, a medida encontra resistência de muitos economistas.
“Controle de preços é algo que foi testado inúmeras vezes em inúmeros lugares e nunca deu certo”, opina Livio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV) e sócio da BRCG Consultoria.
“Na prática, você pode conseguir fazer isso por um curto período, mas, à medida que o tempo passa, os agentes econômicos e os mecanismos de demanda se reorganizam de forma a driblar os controles”, ele completa.
Em diferentes experiências, o controle de preços produziu distorções como escassez de produtos e o surgimento de mercados paralelos.
Isso aconteceu no Brasil em 1986, no governo de José Sarney, com o Plano Cruzado, que entre outras medidas para tentar conter a hiperinflação instituiu o tabelamento de preços nos supermercados.
Houve inclusive incentivo para que o cidadão comum monitorasse os estabelecimentos para conferir se os preços estavam seguindo a tabela do governo — figuras que ficaram conhecidas como “fiscais do Sarney”.
O resultado foram prateleiras vazias, filas nos supermercados e racionamento de produtos.
Depois de 9 meses, os preços foram descongelados e o Cruzado ganhou um substituto, mas a inflação só foi de fato controlada com a chegada do Plano Real, lançado em 1994.
Os próprios americanos chegaram a experimentar com o controle de preços nos anos 1970.
“O Nixon já tentou fazer isso e não deu certo”, diz José Márcio Camargo, que justamente nesse período fazia doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Ele chegou ao país em 1973, ano em que o republicano Richard Nixon, em início de um segundo mandato, implementava uma segunda onda de congelamento de preços.
Uma reportagem da revista Time de julho daquele ano dá dimensão dos impactos: criadores de galinhas estavam matando pintinhos afogados e pecuaristas, abatendo o gado sob argumento que não conseguiam vender seus produtos aos preços exigidos pelo governo sem prejuízo.
O tarifaço de Trump
Outra medida fracassada do chamado “choque Nixon” foi a instituição de uma tarifa de 10% sobre todo produto estrangeiro que entrasse nos EUA.
Trump propõe uma versão com anabolizantes dessa prática, com aumento de tarifas de 10% a 20% para todos os parceiros comerciais do país, de 60% para produtos da China e sobretaxas de mais de 100% em circunstâncias específicas.
O republicano argumenta que o tarifaço incentivaria as empresas a produzirem mais nos Estados Unidos e a criar empregos no país. A maioria dos especialistas discorda.
“Ou vira inflação ou vira redução de demanda”, avalia o professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e economista-chefe do Banco Fator José Francisco de Lima Gonçalves, referindo-se aos possíveis efeitos.
Ele explica com um exemplo ilustrativo da China. Os americanos ou não fabricam ou têm capacidade reduzida para produzir o que importam do país asiático.
Se, de uma hora para outra, esses importados forem sobretaxados, o americano ou vai topar pagar mais caro para ter acesso ao produto de qualquer forma (o que os economistas chamam de demanda pouco elástica), processo que alimenta a inflação, ou vai deixar de comprar porque acha que ele ficou caro demais, com impacto na redução do consumo.
A medida foi a única rejeitada por unanimidade por 39 economistas consultados pelo jornal americano The Wall Street Journal, que levou uma lista das propostas polêmicas que têm circulado nas campanhas para especialistas e para um grupo de 750 eleitores dos dois partidos.
100% dos economistas disseram se opor ao protecionismo tarifário. Já entre os americanos comuns, metade declarou ver a medida com bons olhos.
A proposta de controle de preços de Kamala também reforça o abismo entre economistas e eleitores: só 13% dos especialistas afirmaram ser a favor, enquanto 72% dos cidadãos comuns responderam da mesma forma.
Subsídios, isenções e deportação em massa
Outra proposta de Trump que também divide economistas e leigos é a de tornar permanente uma série de cortes de impostos que ele instituiu em 2017, quando era presidente, e que deveriam ser temporários, com previsão para perderem a validade em 2025.
Esse é um roteiro bastante conhecido no Brasil: benefícios fiscais que nascem com data de validade e acabam se perpetuando indefinidamente.
Um exemplo ilustrativo é a desoneração da folha de pagamentos, instituída em 2011, durante o governo Dilma Rousseff, com caráter provisório, mas que acabou sendo ampliada e segue em vigor mais de uma década depois.
“Eles (Americanos) não estão muito acostumados com isso porque não é da natureza do debate político deles de curto prazo. A gente (o Brasil) é catedrático nesse tema, infelizmente”, diz Livio Ribeiro.
Além da perenização do Tax Cuts and Jobs Act, o pacote lançado por Trump em 2017 e que deveria se encerrar em 2025, o republicano tem uma série de outras propostas que preveem subsídios e isenções, ressalta o economista Steven Kamin, pesquisador sênior do centro de pesquisa American Enterprise Institute.
Entre elas está a de isentar de impostos as gorjetas de quem trabalha no setor de serviços, ideia que acabou sendo também abraçada pela campanha de Kamala Harris.
Além do custo para as contas do governo, economistas avaliam que a medida pode distorcer o mercado de trabalho, já que beneficiaria uma quantidade pequena de trabalhadores de baixa renda.
Outra proposta que tem feito sucesso com parte do eleitorado e que Kamin considera que pode produzir grande impacto negativo na economia americana é a promessa de Trump de deportar milhões de imigrantes sem documentos.
A mão de obra dos imigrantes, ele argumenta, é hoje a base de setores como a construção e diversos segmentos de serviços, especialmente os que pagam menores salários. A redução dessa força de trabalho, além de criar um problema para essas indústrias no curto prazo, alimentaria mais inflação.
Por que agora?
Para José Márcio Camargo, o populismo que avança nos EUA e penetrou o debate eleitoral sobre economia tem suas raízes nas mudanças disruptivas que a globalização levou ao país.
A maior integração econômica e tecnológica com o restante do mundo provocou uma mudança profunda na estrutura da economia americana, reduzindo o peso da indústria e fortalecendo o setor de serviços, que hoje responde por 70% do Produto Interno Bruto (PIB) americano pelo lado da oferta.
“A questão é que, nessa transição, a demanda por trabalho pouco qualificado diminui”, ele completa, referindo-se ao desemprego gerado pela transferência de parte da produção para outras regiões do planeta.
Esse foi um processo, aliás, que não se restringiu aos EUA, mas que se repetiu em outros países ricos, gerando ressentimentos parecidos em determinados grupos de eleitores e discursos políticos que se encaixam na definição de populistas, oferecendo soluções fáceis para questões complexas, que geralmente agradam as grandes massas, mas não resolvem os problemas.
“Acho que o populismo tem se tornado uma força cada vez mais importante na política americana”, diz Kamin.
“A América Latina tem mais história com movimentos populistas, está mais familiarizada com eles. Os EUA menos…mas estamos chegando lá.”
Nova fase do liberalismo americano?
Na disputa mais apertada pela Casa Branca da história recente dos EUA, as propostas populistas para a economia ganharam espaço no debate eleitoral enquanto a retórica do Estado mínimo, que nas últimas décadas esteve muito associada à imagem que o mundo tinha do liberalismo americano, ficou em segundo plano.
Uma evidência nesse sentido, aponta Kamin, é o fato de que as agendas tanto de Trump quanto de Kamala preveem aumento dos gastos do governo e expansão do endividamento público.
“A política fiscal do Trump vai levar a déficits maiores, mas nenhum dos dois candidatos está de nenhuma forma prometendo consolidação fiscal”, avalia o especialista, que teve uma longa carreira no Federal Reserve (FED), o banco central americano.
Isso representa uma quebra da tradição mais recente do debate econômico no país e, para os economistas ouvidos pela reportagem, tem raízes em questões internas dos EUA, mas também ecoa novos fenômenos globais, como a tendência de aumento do papel do Estado.
A retórica do “ultraliberalismo” – ligada à ideia de Estado mínimo, de que o mercado é capaz de se autorregular — perdeu força a partir das crises financeiras que estouraram em 2008/2009 nos EUA e 2011/2012 na Europa, diz Livio Ribeiro, do Ibre-FGV e da BRCG Consultoria. Desde então, ela vem dando lugar à ideia de que um Estado mais forte pode ser desejável, que ganhou ainda mais fôlego com a pandemia de covid-19.
“Isso tem sido visto no mundo inteiro, não é só no caso americano, né? Hoje em dia a gente tem um fiscal mais frouxo no mundo, mais permissivo, com dívidas mais altas, maior participação do Estado – e um monetário que está ali tentando se equilibrar (para controlar o aumento de inflação)”, avalia.
Congelar preços nos supermercados, sobretaxar produtos importados, tornar permanentes subsídios desenhados para serem provisórios.
Todas propostas testadas no passado na América Latina, com resultados considerados desastrosos por seus críticos — e lançadas pelas campanhas ou da democrata Kamala Harris ou do republicano Donald Trump na disputa pela Presidência dos Estados Unidos.
As ideias são algumas das que têm circulado neste ciclo eleitoral e chamado atenção por agradarem eleitores enquanto causam arrepios em muitos economistas.
O populismo se infiltrou no debate econômico nestas eleições americanas, dizem os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, como mais um sintoma da polarização que rachou os EUA e tem produzido mudanças profundas no país mais rico do mundo.
Congelamento de preços e a memória dos ‘fiscais do Sarney’
“Existe uma tendência de latino-americanização dos programas dos dois candidatos”, comenta o professor titular aposentado da PUC-RJ e economista-chefe da Genial Investimentos José Márcio Camargo.
Uma das propostas que chamam atenção nesse sentido na campanha da vice-presidente Kamala Harris é o controle de preços para combater aumentos abusivos.
Em um comício na Carolina do Norte em 16 de agosto, ela disse que trabalharia para aprovar a primeira medida a nível federal para penalizar empresas que, por exemplo, se comportassem de forma “oportunista” em momentos de crise, como desastres naturais, para subir preços e engordar os lucros.
Popular entre eleitores, a medida encontra resistência de muitos economistas.
“Controle de preços é algo que foi testado inúmeras vezes em inúmeros lugares e nunca deu certo”, opina Livio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV) e sócio da BRCG Consultoria.
“Na prática, você pode conseguir fazer isso por um curto período, mas, à medida que o tempo passa, os agentes econômicos e os mecanismos de demanda se reorganizam de forma a driblar os controles”, ele completa.
Em diferentes experiências, o controle de preços produziu distorções como escassez de produtos e o surgimento de mercados paralelos.
Isso aconteceu no Brasil em 1986, no governo de José Sarney, com o Plano Cruzado, que entre outras medidas para tentar conter a hiperinflação instituiu o tabelamento de preços nos supermercados.
Houve inclusive incentivo para que o cidadão comum monitorasse os estabelecimentos para conferir se os preços estavam seguindo a tabela do governo — figuras que ficaram conhecidas como “fiscais do Sarney”.
O resultado foram prateleiras vazias, filas nos supermercados e racionamento de produtos.
Depois de 9 meses, os preços foram descongelados e o Cruzado ganhou um substituto, mas a inflação só foi de fato controlada com a chegada do Plano Real, lançado em 1994.
Os próprios americanos chegaram a experimentar com o controle de preços nos anos 1970.
“O Nixon já tentou fazer isso e não deu certo”, diz José Márcio Camargo, que justamente nesse período fazia doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Ele chegou ao país em 1973, ano em que o republicano Richard Nixon, em início de um segundo mandato, implementava uma segunda onda de congelamento de preços.
Uma reportagem da revista Time de julho daquele ano dá dimensão dos impactos: criadores de galinhas estavam matando pintinhos afogados e pecuaristas, abatendo o gado sob argumento que não conseguiam vender seus produtos aos preços exigidos pelo governo sem prejuízo.
O tarifaço de Trump
Outra medida fracassada do chamado “choque Nixon” foi a instituição de uma tarifa de 10% sobre todo produto estrangeiro que entrasse nos EUA.
Trump propõe uma versão com anabolizantes dessa prática, com aumento de tarifas de 10% a 20% para todos os parceiros comerciais do país, de 60% para produtos da China e sobretaxas de mais de 100% em circunstâncias específicas.
O republicano argumenta que o tarifaço incentivaria as empresas a produzirem mais nos Estados Unidos e a criar empregos no país. A maioria dos especialistas discorda.
“Ou vira inflação ou vira redução de demanda”, avalia o professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e economista-chefe do Banco Fator José Francisco de Lima Gonçalves, referindo-se aos possíveis efeitos.
Ele explica com um exemplo ilustrativo da China. Os americanos ou não fabricam ou têm capacidade reduzida para produzir o que importam do país asiático.
Se, de uma hora para outra, esses importados forem sobretaxados, o americano ou vai topar pagar mais caro para ter acesso ao produto de qualquer forma (o que os economistas chamam de demanda pouco elástica), processo que alimenta a inflação, ou vai deixar de comprar porque acha que ele ficou caro demais, com impacto na redução do consumo.
A medida foi a única rejeitada por unanimidade por 39 economistas consultados pelo jornal americano The Wall Street Journal, que levou uma lista das propostas polêmicas que têm circulado nas campanhas para especialistas e para um grupo de 750 eleitores dos dois partidos.
100% dos economistas disseram se opor ao protecionismo tarifário. Já entre os americanos comuns, metade declarou ver a medida com bons olhos.
A proposta de controle de preços de Kamala também reforça o abismo entre economistas e eleitores: só 13% dos especialistas afirmaram ser a favor, enquanto 72% dos cidadãos comuns responderam da mesma forma.
Subsídios, isenções e deportação em massa
Outra proposta de Trump que também divide economistas e leigos é a de tornar permanente uma série de cortes de impostos que ele instituiu em 2017, quando era presidente, e que deveriam ser temporários, com previsão para perderem a validade em 2025.
Esse é um roteiro bastante conhecido no Brasil: benefícios fiscais que nascem com data de validade e acabam se perpetuando indefinidamente.
Um exemplo ilustrativo é a desoneração da folha de pagamentos, instituída em 2011, durante o governo Dilma Rousseff, com caráter provisório, mas que acabou sendo ampliada e segue em vigor mais de uma década depois.
“Eles (Americanos) não estão muito acostumados com isso porque não é da natureza do debate político deles de curto prazo. A gente (o Brasil) é catedrático nesse tema, infelizmente”, diz Livio Ribeiro.
Além da perenização do Tax Cuts and Jobs Act, o pacote lançado por Trump em 2017 e que deveria se encerrar em 2025, o republicano tem uma série de outras propostas que preveem subsídios e isenções, ressalta o economista Steven Kamin, pesquisador sênior do centro de pesquisa American Enterprise Institute.
Entre elas está a de isentar de impostos as gorjetas de quem trabalha no setor de serviços, ideia que acabou sendo também abraçada pela campanha de Kamala Harris.
Além do custo para as contas do governo, economistas avaliam que a medida pode distorcer o mercado de trabalho, já que beneficiaria uma quantidade pequena de trabalhadores de baixa renda.
Outra proposta que tem feito sucesso com parte do eleitorado e que Kamin considera que pode produzir grande impacto negativo na economia americana é a promessa de Trump de deportar milhões de imigrantes sem documentos.
A mão de obra dos imigrantes, ele argumenta, é hoje a base de setores como a construção e diversos segmentos de serviços, especialmente os que pagam menores salários. A redução dessa força de trabalho, além de criar um problema para essas indústrias no curto prazo, alimentaria mais inflação.
Por que agora?
Para José Márcio Camargo, o populismo que avança nos EUA e penetrou o debate eleitoral sobre economia tem suas raízes nas mudanças disruptivas que a globalização levou ao país.
A maior integração econômica e tecnológica com o restante do mundo provocou uma mudança profunda na estrutura da economia americana, reduzindo o peso da indústria e fortalecendo o setor de serviços, que hoje responde por 70% do Produto Interno Bruto (PIB) americano pelo lado da oferta.
“A questão é que, nessa transição, a demanda por trabalho pouco qualificado diminui”, ele completa, referindo-se ao desemprego gerado pela transferência de parte da produção para outras regiões do planeta.
Esse foi um processo, aliás, que não se restringiu aos EUA, mas que se repetiu em outros países ricos, gerando ressentimentos parecidos em determinados grupos de eleitores e discursos políticos que se encaixam na definição de populistas, oferecendo soluções fáceis para questões complexas, que geralmente agradam as grandes massas, mas não resolvem os problemas.
“Acho que o populismo tem se tornado uma força cada vez mais importante na política americana”, diz Kamin.
“A América Latina tem mais história com movimentos populistas, está mais familiarizada com eles. Os EUA menos…mas estamos chegando lá.”
Nova fase do liberalismo americano?
Na disputa mais apertada pela Casa Branca da história recente dos EUA, as propostas populistas para a economia ganharam espaço no debate eleitoral enquanto a retórica do Estado mínimo, que nas últimas décadas esteve muito associada à imagem que o mundo tinha do liberalismo americano, ficou em segundo plano.
Uma evidência nesse sentido, aponta Kamin, é o fato de que as agendas tanto de Trump quanto de Kamala preveem aumento dos gastos do governo e expansão do endividamento público.
“A política fiscal do Trump vai levar a déficits maiores, mas nenhum dos dois candidatos está de nenhuma forma prometendo consolidação fiscal”, avalia o especialista, que teve uma longa carreira no Federal Reserve (FED), o banco central americano.
Isso representa uma quebra da tradição mais recente do debate econômico no país e, para os economistas ouvidos pela reportagem, tem raízes em questões internas dos EUA, mas também ecoa novos fenômenos globais, como a tendência de aumento do papel do Estado.
A retórica do “ultraliberalismo” – ligada à ideia de Estado mínimo, de que o mercado é capaz de se autorregular — perdeu força a partir das crises financeiras que estouraram em 2008/2009 nos EUA e 2011/2012 na Europa, diz Livio Ribeiro, do Ibre-FGV e da BRCG Consultoria. Desde então, ela vem dando lugar à ideia de que um Estado mais forte pode ser desejável, que ganhou ainda mais fôlego com a pandemia de covid-19.
“Isso tem sido visto no mundo inteiro, não é só no caso americano, né? Hoje em dia a gente tem um fiscal mais frouxo no mundo, mais permissivo, com dívidas mais altas, maior participação do Estado – e um monetário que está ali tentando se equilibrar (para controlar o aumento de inflação)”, avalia.
Congelar preços nos supermercados, sobretaxar produtos importados, tornar permanentes subsídios desenhados para serem provisórios.
Todas propostas testadas no passado na América Latina, com resultados considerados desastrosos por seus críticos — e lançadas pelas campanhas ou da democrata Kamala Harris ou do republicano Donald Trump na disputa pela Presidência dos Estados Unidos.
As ideias são algumas das que têm circulado neste ciclo eleitoral e chamado atenção por agradarem eleitores enquanto causam arrepios em muitos economistas.
O populismo se infiltrou no debate econômico nestas eleições americanas, dizem os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, como mais um sintoma da polarização que rachou os EUA e tem produzido mudanças profundas no país mais rico do mundo.
Congelamento de preços e a memória dos ‘fiscais do Sarney’
“Existe uma tendência de latino-americanização dos programas dos dois candidatos”, comenta o professor titular aposentado da PUC-RJ e economista-chefe da Genial Investimentos José Márcio Camargo.
Uma das propostas que chamam atenção nesse sentido na campanha da vice-presidente Kamala Harris é o controle de preços para combater aumentos abusivos.
Em um comício na Carolina do Norte em 16 de agosto, ela disse que trabalharia para aprovar a primeira medida a nível federal para penalizar empresas que, por exemplo, se comportassem de forma “oportunista” em momentos de crise, como desastres naturais, para subir preços e engordar os lucros.
Popular entre eleitores, a medida encontra resistência de muitos economistas.
“Controle de preços é algo que foi testado inúmeras vezes em inúmeros lugares e nunca deu certo”, opina Livio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV) e sócio da BRCG Consultoria.
“Na prática, você pode conseguir fazer isso por um curto período, mas, à medida que o tempo passa, os agentes econômicos e os mecanismos de demanda se reorganizam de forma a driblar os controles”, ele completa.
Em diferentes experiências, o controle de preços produziu distorções como escassez de produtos e o surgimento de mercados paralelos.
Isso aconteceu no Brasil em 1986, no governo de José Sarney, com o Plano Cruzado, que entre outras medidas para tentar conter a hiperinflação instituiu o tabelamento de preços nos supermercados.
Houve inclusive incentivo para que o cidadão comum monitorasse os estabelecimentos para conferir se os preços estavam seguindo a tabela do governo — figuras que ficaram conhecidas como “fiscais do Sarney”.
O resultado foram prateleiras vazias, filas nos supermercados e racionamento de produtos.
Depois de 9 meses, os preços foram descongelados e o Cruzado ganhou um substituto, mas a inflação só foi de fato controlada com a chegada do Plano Real, lançado em 1994.
Os próprios americanos chegaram a experimentar com o controle de preços nos anos 1970.
“O Nixon já tentou fazer isso e não deu certo”, diz José Márcio Camargo, que justamente nesse período fazia doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Ele chegou ao país em 1973, ano em que o republicano Richard Nixon, em início de um segundo mandato, implementava uma segunda onda de congelamento de preços.
Uma reportagem da revista Time de julho daquele ano dá dimensão dos impactos: criadores de galinhas estavam matando pintinhos afogados e pecuaristas, abatendo o gado sob argumento que não conseguiam vender seus produtos aos preços exigidos pelo governo sem prejuízo.
O tarifaço de Trump
Outra medida fracassada do chamado “choque Nixon” foi a instituição de uma tarifa de 10% sobre todo produto estrangeiro que entrasse nos EUA.
Trump propõe uma versão com anabolizantes dessa prática, com aumento de tarifas de 10% a 20% para todos os parceiros comerciais do país, de 60% para produtos da China e sobretaxas de mais de 100% em circunstâncias específicas.
O republicano argumenta que o tarifaço incentivaria as empresas a produzirem mais nos Estados Unidos e a criar empregos no país. A maioria dos especialistas discorda.
“Ou vira inflação ou vira redução de demanda”, avalia o professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e economista-chefe do Banco Fator José Francisco de Lima Gonçalves, referindo-se aos possíveis efeitos.
Ele explica com um exemplo ilustrativo da China. Os americanos ou não fabricam ou têm capacidade reduzida para produzir o que importam do país asiático.
Se, de uma hora para outra, esses importados forem sobretaxados, o americano ou vai topar pagar mais caro para ter acesso ao produto de qualquer forma (o que os economistas chamam de demanda pouco elástica), processo que alimenta a inflação, ou vai deixar de comprar porque acha que ele ficou caro demais, com impacto na redução do consumo.
A medida foi a única rejeitada por unanimidade por 39 economistas consultados pelo jornal americano The Wall Street Journal, que levou uma lista das propostas polêmicas que têm circulado nas campanhas para especialistas e para um grupo de 750 eleitores dos dois partidos.
100% dos economistas disseram se opor ao protecionismo tarifário. Já entre os americanos comuns, metade declarou ver a medida com bons olhos.
A proposta de controle de preços de Kamala também reforça o abismo entre economistas e eleitores: só 13% dos especialistas afirmaram ser a favor, enquanto 72% dos cidadãos comuns responderam da mesma forma.
Subsídios, isenções e deportação em massa
Outra proposta de Trump que também divide economistas e leigos é a de tornar permanente uma série de cortes de impostos que ele instituiu em 2017, quando era presidente, e que deveriam ser temporários, com previsão para perderem a validade em 2025.
Esse é um roteiro bastante conhecido no Brasil: benefícios fiscais que nascem com data de validade e acabam se perpetuando indefinidamente.
Um exemplo ilustrativo é a desoneração da folha de pagamentos, instituída em 2011, durante o governo Dilma Rousseff, com caráter provisório, mas que acabou sendo ampliada e segue em vigor mais de uma década depois.
“Eles (Americanos) não estão muito acostumados com isso porque não é da natureza do debate político deles de curto prazo. A gente (o Brasil) é catedrático nesse tema, infelizmente”, diz Livio Ribeiro.
Além da perenização do Tax Cuts and Jobs Act, o pacote lançado por Trump em 2017 e que deveria se encerrar em 2025, o republicano tem uma série de outras propostas que preveem subsídios e isenções, ressalta o economista Steven Kamin, pesquisador sênior do centro de pesquisa American Enterprise Institute.
Entre elas está a de isentar de impostos as gorjetas de quem trabalha no setor de serviços, ideia que acabou sendo também abraçada pela campanha de Kamala Harris.
Além do custo para as contas do governo, economistas avaliam que a medida pode distorcer o mercado de trabalho, já que beneficiaria uma quantidade pequena de trabalhadores de baixa renda.
Outra proposta que tem feito sucesso com parte do eleitorado e que Kamin considera que pode produzir grande impacto negativo na economia americana é a promessa de Trump de deportar milhões de imigrantes sem documentos.
A mão de obra dos imigrantes, ele argumenta, é hoje a base de setores como a construção e diversos segmentos de serviços, especialmente os que pagam menores salários. A redução dessa força de trabalho, além de criar um problema para essas indústrias no curto prazo, alimentaria mais inflação.
Por que agora?
Para José Márcio Camargo, o populismo que avança nos EUA e penetrou o debate eleitoral sobre economia tem suas raízes nas mudanças disruptivas que a globalização levou ao país.
A maior integração econômica e tecnológica com o restante do mundo provocou uma mudança profunda na estrutura da economia americana, reduzindo o peso da indústria e fortalecendo o setor de serviços, que hoje responde por 70% do Produto Interno Bruto (PIB) americano pelo lado da oferta.
“A questão é que, nessa transição, a demanda por trabalho pouco qualificado diminui”, ele completa, referindo-se ao desemprego gerado pela transferência de parte da produção para outras regiões do planeta.
Esse foi um processo, aliás, que não se restringiu aos EUA, mas que se repetiu em outros países ricos, gerando ressentimentos parecidos em determinados grupos de eleitores e discursos políticos que se encaixam na definição de populistas, oferecendo soluções fáceis para questões complexas, que geralmente agradam as grandes massas, mas não resolvem os problemas.
“Acho que o populismo tem se tornado uma força cada vez mais importante na política americana”, diz Kamin.
“A América Latina tem mais história com movimentos populistas, está mais familiarizada com eles. Os EUA menos…mas estamos chegando lá.”
Nova fase do liberalismo americano?
Na disputa mais apertada pela Casa Branca da história recente dos EUA, as propostas populistas para a economia ganharam espaço no debate eleitoral enquanto a retórica do Estado mínimo, que nas últimas décadas esteve muito associada à imagem que o mundo tinha do liberalismo americano, ficou em segundo plano.
Uma evidência nesse sentido, aponta Kamin, é o fato de que as agendas tanto de Trump quanto de Kamala preveem aumento dos gastos do governo e expansão do endividamento público.
“A política fiscal do Trump vai levar a déficits maiores, mas nenhum dos dois candidatos está de nenhuma forma prometendo consolidação fiscal”, avalia o especialista, que teve uma longa carreira no Federal Reserve (FED), o banco central americano.
Isso representa uma quebra da tradição mais recente do debate econômico no país e, para os economistas ouvidos pela reportagem, tem raízes em questões internas dos EUA, mas também ecoa novos fenômenos globais, como a tendência de aumento do papel do Estado.
A retórica do “ultraliberalismo” – ligada à ideia de Estado mínimo, de que o mercado é capaz de se autorregular — perdeu força a partir das crises financeiras que estouraram em 2008/2009 nos EUA e 2011/2012 na Europa, diz Livio Ribeiro, do Ibre-FGV e da BRCG Consultoria. Desde então, ela vem dando lugar à ideia de que um Estado mais forte pode ser desejável, que ganhou ainda mais fôlego com a pandemia de covid-19.
“Isso tem sido visto no mundo inteiro, não é só no caso americano, né? Hoje em dia a gente tem um fiscal mais frouxo no mundo, mais permissivo, com dívidas mais altas, maior participação do Estado – e um monetário que está ali tentando se equilibrar (para controlar o aumento de inflação)”, avalia.
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