Isolado em uma chácara no interior de Mato Grosso do Sul. É assim que vive atualmente o mecânico e empresário Vaderlei Scuira, que denuncia o histórico de acobertamento por parte do MPMS (Ministério Público de MS) e Polícia Civil de esquemas de corrupção no Detran-MS (Departamento Estadual de Trânsito de MS).
Em entrevista ao Jornal Midiamax, o mecânico relembra que a luta é antiga e, 36 anos depois, Scuira se declara derrotado: “o mal venceu”. Vaderlei é taxativo ao afirmar que a inércia do MP favorece um esquema sistêmico e crônico de corrupção no Detran-MS, que vai se modernizando ano após ano e apenas ‘muda de mão’ conforme chegam novos poderosos.
No entanto, muitas das denúncias realizadas por Scuira foram reconhecidas como procedentes. Mesmo assim, segundo ele, acabaram prescritas e arquivadas. O mecânico recebeu a reportagem do Jornal Midiamax e denuncia o que chama de ‘sistemático acobertamento de crimes no Detran-MS’.
Logo no começo da entrevista, Vaderlei cita diversos focos de corrupção no Detran como fraudes em leilões, fraudes com vistoriadoras e até mesmo esquema de venda de carros roubados que foram apreendidos e que nunca foram devolvidos aos proprietários.
No entanto, a especialidade do mecânico é em relação à fraude na condenação de motores por vistoriadores do Detran-MS sob acusação de serem adulterados quando, na verdade, eram originais.
Scuira tinha empresa que vendia motores e, no fim dos anos 80, percebeu que havia algo de errado, já que começou a ser procurado por clientes que precisavam comprar motor novo, mas que possuíam o motor original no veículo. Porém, segundo a denúncia, o Detran-MS encaminhava o veículo para uma perícia na Polícia Civil.
Assim começou a luta de Scuira para tentar provar que o Detran-MS em conluio com a Polícia Civil condenavam motores originais como sendo adulterados. O mecânico denuncia que esses motores iam parar em ferros-velhos e, depois, eram vendidos por preço muito abaixo do mercado.
Vaderlei explica que o imbróglio envolvendo motores de veículos gira em torno basicamente do artigo 311 do Código Penal, que desde 1996 considera crime, com reclusão de três a seis anos, além de multa, “adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento”.
Para provar o que dizia, chegou a ir até São José dos Campos, interior de São Paulo, fazer um laudo pericial atestando que os motores apontados como adulterados pelo Detran-MS – com aval da perícia da Polícia – eram, na verdade, originais.
No entanto, nem com essas provas, conseguiu dar andamento às denúncias feitas ao MPMS, que arquivou tudo. Em 2017, o Jornal Midiamax veiculou a denúncia de Scuira sobre um caso em que tem toda a documentação de motor original vendido a um cliente e que foi classificado como adulterado pelo Detran-MS.
“O motivo alegado foi que o motor não poderia ter inscrito nele qualquer numeração”, disse Scuira, que rebateu a suspeita: “isso é um absurdo”.
Na denúncia proposta por Scuira ele aponta que quem cometera o que chamou de “infração administrativa” teriam sido Carlos Henrique dos Santos Pereira e Wandir Sidrônio Batista Palheta, então diretor-presidente e procurador jurídico do Detran, respectivamente.
‘Nem o CNMP não fez nada. Vou recorrer pra quem’?, lamenta mecânico
Apesar de ter desistido de ‘lutar’, Vaderlei mantém farto acervo de provas de tudo o que diz. Inclusive, com vídeos gravados de conversas com membros do MPMS.
O ápice da derrota, segundo o empresário, é o fato de até mesmo o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), órgão responsável por investigar atuação de membros dos MPs, ter arquivado apuração contra possíveis irregularidades cometidas por promotores, procuradores e até mesmo PGJs (Procuradores-Gerais de Justiça) na condução de inquéritos envolvendo corrupção no órgão de trânsito.
Denúncias de irregularidades no Detran-MS feitas – exaustivamente e sem sucesso – por Scuira também já foram denunciadas pelo Jornal Midiamax. A reportagem “Mecânico que flagrou e denunciou irregularidades no Detran-MS diz que ‘ninguém quer investigar’” revelou um pouco do que Vaderlei enfrentou em mais de 30 anos denunciando o esquema, mas que resultou em praticamente zero resolutividade.
As denúncias de ‘má condução’ de inquéritos foram feitas aos membros do CNMP, os promotores de Justiça, Mariano Paganini Lauria, membro Auxiliar da Corregedoria Nacional e Marcelo Oliveira Santos, durante correição extraordinária feita nas 29ª, 30ª e 31ª promotorias de Justiça de MS, em setembro de 2016.
As conversas foram gravadas pelo próprio Scuira, que abordou os representantes do Conselho Nacional e solicitou que fosse aberto procedimento para apurar a conduta dos promotores do MPMS.
Conforme as gravações – que podem ser assistidas ao final do vídeo com a entrevista de Scuira -, os representantes do CNMP demonstram falta de interesse em ouvir as denúncias. O mecânico começa a relatar a falta de interesse do MPMS em investigar diversos indícios de irregularidades no Detran-MS, mas os promotores começam a colocar obstáculos para registrar as acusações contra colegas de MS.
Scuira relatou que conversou com o corregedor-geral do MPMS na época, procurador de Justiça Marcos Antônio Martins Sottoriva, mas o mesmo também disse que não poderia fazer nada.
No decorrer da gravação, o mecânico cita o nome de vários promotores que, segundo ele, sabiam dos esquemas de fraude e corrupção no órgão de trânsito, mas que não agiram como deveriam para investigar as denúncias e levar à punição dos envolvidos.
Em determinado momento, o promotor Mariano Lauria tenta justificar a atuação dos promotores, dizendo que o membro do MP tem a independência funcional e que não haveria o que fazer, a não ser que houvesse uma negligência comprovada.
Negligência dos membros ministeriais é justamente o que Scuira tentava denunciar, já que possui provas das irregularidades no Detran-MS e, mesmo assim, inúmeros inquéritos foram arquivados sem chegar aos autores dos ilícitos flagrados.
Ríspido, o promotor do CNMP questiona o que Scuira pretende. Neste momento, acaba surpreendido quando o o mecânico diz que gostaria de ser ‘ouvido a termo’. É obrigação do membro ministerial ouvir um cidadão que alega ter crimes a relatar. Faz parte do processo para cumprir a função básica do MP, que é defender o cumprimento das leis.
Porém, Mariano é enfático ao dizer que “não tem tempo para ouvir o denunciante”, que afirma ter provas concretas de negligências cometidas por vários promotores do MPMS.
A ‘falta de tempo’ alegada pelo promotor causa estranheza, uma vez que a visita dele ao MPMS naquela ocasião tratava justamente de uma correição extraordinária. Ou seja, ele estava no órgão justamente para verificar se a atuação dos membros do MP sul-mato-grossense estava de acordo com os deveres funcionais.
Depois, mesmo cara a cara com o mecânico, tenta convencê-lo a abrir uma reclamação disciplinar pelo site do CNMP: “É muito simples”. Por fim, diante da insistência do mecânico, o representante do CNMP decide abrir um termo para registrar a denúncia.
Apesar de ouvir de Scuira que vários promotores não teriam agido conforme deveriam diante das denúncias, os representantes do CNMP claramente direcionam para que a representação fosse feita restrita a um único caso. Somente contra o promotor Henrique Candia, relacionado a um determinado procedimento que ele arquivou.
Suspeita de acobertamento de PGJs
“Todos [os PGJs] tiveram conhecimento. O Paulo Passos, eu cansei de falar pra ele”, relata Vaderlei, afirmando que possui todas as conversas gravadas. Inclusive, uma em que o então chefe do MPMS, que hoje ocupa cargo de conselheiro do CNMP, Paulo Passos, pede para não ser mais ‘incomodado’ pelas denúncias: “De tanto ir lá, comecei a ligar para ele e ele pediu para eu não ligar mais, porque estava ‘enchendo o saco’”, lembra Scuira.
‘Coincidentemente’, como diz Scuira, em 2021, Paulo Passos obtém votos favoráveis no Senado para assumir um cargo no CNMP, onde continua.
Outra situação relatada por Scuira é referente ao promotor de Justiça, Fernando Martins Zaupa. Um dos poucos que segundo Scuira estaria ‘se aprofundando nas investigações sobre a corrupção no Detran’. “Tiraram ele, quando começou a investigar”, afirma.
O mecânico relata que o próprio promotor teria lhe confirmado o motivo da remoção: “Ele falou pra mim, você estava certo. Comecei a mexer e me tiraram daqui”, diz Scuira. No entanto, os membros do MP tem uma prerrogativa constitucional que lhes garante não serem ‘tirados’ de uma promotoria a não ser que aceitem: tal como os magistrados, os membros desfrutam da ‘inamovibilidade’.
Mesmo assim, como a remoção de promotor para outra promotoria depende do pedido do membro, Scuira acredita que Zaupa teria sofrido constrangimento e acabou cedendo ao ser pressionado para pedir que atuasse em outra área.
A reportagem questionou o promotor Zaupa sobre as suspeitas de constrangimento para pedir remoção no decorrer das investigações sobre corrupção no Detran-MS, mas não obteve resposta até esta publicação. O espaço segue aberto para manifestação.
O MPMS também foi acionado para se posicionar sobre as suposta inércia diante de denúncias de corrupção no Detran-MS apontadas por Scuira, mas, como tem feito há anos quando acionado oficialmente pelo Jornal Midiamax, não se manifestou.
PGJ na época e acusado por Scuira de ter conhecimento da suposta inércia dos promotores, Paulo Passos respondeu ao Jornal Midiamax e admitiu que se lembra do mecânico. No entanto, garantiu que todas as denúncias recebidas foram devidamente apuradas pelos órgãos competentes, “os quais não eram o Procurador-Geral de Justiça“.
Ainda conforme Passos, o “inconformismo com eventual decisão adotada por membros do Ministério Público ou pelo sistema de justiça é legítimo, mas deve obedecer ao regramento legal. De qualquer maneira, dentro do sistema de justiça brasileiro, o inconformismo deve ser manejado de acordo com a prescrição legal. Reafirmo, por fim, a absoluta certeza da correção dos meus atos e dos membros do Ministério Público, os quais sempre procuraram buscar a aplicação da lei a toda e qualquer pessoa”.
Em relação às denuncias feitas ao CNMP, o ex-pgj do MPMS e atual conselheiro limitou-se a dizer que “O CNMP tem o dever de perscrutar todos os atos que chegam ao seu conhecimento“.
Já o CNMP emitiu nota oficial que se limita ao caso registrado pelo promotor quando esteve em Campo Grande na época, notadamente restringindo as denúncias apresentadas por Scuira a apenas uma situação específica, ao invés de expandir a apuração à suspeita de reiterada prevaricação.
“Ao longo dos trabalhos da Correição Extraordinária realizada no MPMS em setembro de 2016, a equipe de correição foi procurada pelo empresário Vaderlei Scuira, que solicitou providências do CNMP para apurar a conduta do Promotor de Justiça Henrique Cândia na esfera disciplinar, por suposto arquivamento indevido de Inquérito Civil. Na ocasião, a equipe recebeu documentos e lavrou termo de declarações do empresário. A partir de tais declarações e documentos, foi instaurada, em 18/10/2016, a Reclamação Disciplinar n. 1.00822/2016-65 para apuração da conduta do membro do MPMS. Aos 10/11/2016, foi proferida decisão de arquivamento do feito pelo então Corregedor Nacional do Ministério Público, acolhendo o parecer que consignara não ter sido verificada a prática de falta funcional“.
Por sua vez, o Detran-MS informou que suspeitas de irregularidades em vistorias do Detran-MS ou terceirizadas devem ser notificadas à Polícia Civil “para solicitar a investigação e a perícia técnica do órgão para investigação do caso”.
Tanto Sejusp-MS como a Polícia Civil foram acionadas para se manifestar sobre as acusações, mas não responderam aos questionamentos até esta publicação. O espaço segue aberto para posicionamento.
Mecânico denuncia vários focos de corrupção no Detran-MS
Um dos esquemas de fraudes no Detran-MS denunciados por Scuira envolvias as vistorias, que antes eram feitas no pátio do órgão. O fim do serviço de vistoria veicular do Detran-MS é uma pá de cal na luta pela modernização do serviço no pátio do órgão, uma história permeada por escândalos com indícios de corrupção, fraudes e ações judiciais – que culminaram até em episódio conhecido como “caos na vistoria”.
Denúncias publicadas por anos pelo Jornal Midiamax e corroboradas pelo mecânico mostravam diversos casos de fraudes, principalmente envolvendo veículos sem condições de rodagem que eram liberados – ou o contrário também.
Ex-diretor do Detran-MS era sócio oculto de vistoriadora descredenciada após denúncias
Oito anos após o início das investigações e vai e vem na Justiça, o Detran-MS descredenciou em novembro de 2022, definitivamente, a Focar Vistoria Veicular. O ex-diretor do Detran-MS, Nelson Gonçalves Lemes, é um dos sócios da empresa.
As investigações da atuação da vistoriadora começaram em 2015, após reportagem do Jornal Midiamax que denunciou irregularidades.
O processo foi iniciado a partir de denúncia do MPMS, que na época da apuração chegou a arquivar o inquérito por mais de 1 ano e retomou as apurações três anos depois, em 2018.
Na ação que culminou no descredenciamento, consta que “a requerida Focar Vistoria Veicular Eireli–ME deu entrada no pedido de credenciamento ocultando novamente a existência de sócio majoritário em seu quadro societário”.
Nelson Gonçalves foi nomeado para o cargo em comissão de diretor para gerência de segurança de trânsito e registro de veículos no Detran-MS em fevereiro de 2007 e exonerado em julho de 2014. A portaria que regulamenta o credenciamento de empresas de vistoria foi publicada em 27 de junho de 2014.
Operação revela fraudes no 4º eixo
Recentemente, no início deste ano, após denúncias feitas pelo Jornal Midiamax, operação policial desmontou esquema de fraudes na documentação de caminhões a partir do 4º eixo.
As investigações chegaram à servidora comissionada na Cotra (Corregedoria de Trânsito), Yasmin Osório Cabral, que chegou a ser presa e está sob regime domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica.
Também foi expedido mandado de prisão contra o despachante David Cloky Hoffaman Chita, que está foragido e tenta fechar acordo de delação premiada com o MPMS, que ainda não respondeu.
Em vídeo enviado ao Jornal Midiamax e que foi entregue pelo jornal ao PGJ Romão Ávila Milhan Júnior, o despachante denunciou o deputado federal Beto Pereira (PSDB) como o chefe do esquema.
No entanto, o parlamentar não consta na lista de investigados, já que, conforme apurado pela reportagem, as investigações não quebraram sigilo bancário dos alvos.
O esquema denunciado por Chita mostrou que as fraudes contariam com envolvimento direto do deputado, que exigia repasses mensais em troca de blindagem ao esquema.
A servidora e o despachante são réus no processo, que tramita na Justiça.
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