Rafaela Bomfim*
Na contramão de um setor conhecido pelo desperdício e exploração, uma nova vertente ganha força no universo da moda, sem ocupar espaço nem contaminar o meio ambiente. Pesquisa da Universidade de Portsmouth propõe uma alternativa ousada à lógica da fast fashion — roupas que existem apenas no mundo digital, criadas para vestir avatares, fotos e identidades virtuais, mas que podem ser transformadas para o mundo real.
Por que o oceano está ficando mais escuro?
Brasil e França testam nova terapia celular contra câncer no cérebro
Publicado no International Journal of Retail and Distribution Management, o estudo analisou a crescente presença da moda digital com o seu potencial para transformar um dos segmentos mais poluentes da economia global. É que com a produção em massa acelerando o consumo de recursos naturais, o acúmulo de resíduos têxteis e as emissões de carbono, a proposta de um guarda-roupa virtual é a alternativa de baixo impacto ambiental, com apelo crescente entre consumidores conectados, criativos e conscientes.
A ideia é simples na teoria e inovadora na prática: criar roupas que só existem digitalmente, sem tecidos, costuras ou logística. Vestimentas desenvolvidas com softwares de design 3D podem ser compradas, “usadas” em fotos ou ambientes virtuais, e descartadas sem deixar resíduos físicos. O estudo observou que há consumidores dispostos a pagar por peças que não podem ser tocadas ou experimentadas. A surpresa veio dos dados: pessoas com alta necessidade de toque — aquelas que tradicionalmente valorizam o contato físico com roupas — demonstraram receptividade à moda digital, especialmente quando combinada com experiências imersivas proporcionadas por tecnologias como realidade aumentada e óculos de realidade virtual.
Sensações
“Descobrimos que muitos consumidores conseguem simular mentalmente a sensação das roupas digitais. Para eles, a interatividade, a personalização e a criatividade da e-fashion não representam uma perda de experiência, mas sim uma nova forma de expressão estética e sensorial”, explica Kokho Jason Sit, professor senior de Marketing da Universidade de Portsmouth e coautor do estudo.
Ao Correio, a estilista e designer pós-graduada em direção de moda, Bruna Bittar, reforça que a moda digital oferece uma alternativa concreta ao consumo desenfreado do fast fashion porque permite experimentar, expressar e criar identidade sem precisar produzir fisicamente uma peça. Em vez de comprar uma peça nova para cada postagem nas redes sociais, por exemplo, muitos consumidores jovens partem para as opções digitais que só existem no ambiente virtual — o que reduz significativamente o descarte têxtil e o impacto ambiental. Segundo ela, é necessário melhorar a usabilidade em plataformas sociais, ampliar a acessibilidade dos avatares em ambientes de realidade aumentada e incentivar coleções digitais assinadas por grandes e pequenos estilistas. “A moda digital não precisa substituir o físico — ela pode ser um novo pilar do guarda-roupa contemporâneo”, afirma.
Bruna também observa que a moda digital amplia o espaço de experimentação estética sem o peso do consumo material. “Podemos criar roupas que desafiam as leis da física, que mudam de cor com o humor do avatar, que simulam materiais futuristas — tudo isso sem custo ambiental ou imposição de normas sociais.” Essa liberdade, segundo ela, estimula uma relação mais autêntica com a própria imagem. Quando a pessoa experimenta um look digital ousado e se sente representada, tende a questionar os padrões impostos pela indústria tradicional e a buscar escolhas mais conscientes também no mundo físico. “A moda digital é, antes de tudo, um espelho ampliado da subjetividade”, conclui.
Novos hábitos
Para a designer, tecnologias como realidade aumentada (AR) e realidade virtual (VR) são fundamentais para consolidar a moda digital como um hábito de consumo, e não apenas uma curiosidade. Com a AR, já é possível “provar” roupas diretamente pelo celular ou tablet, revolucionando o e-commerce. Com a VR, consumidores entram em desfiles e showrooms virtuais, interagindo com as criações como se estivessem no ateliê do designer. Bruna destaca que a estética da moda digital está em diálogo com a cultura gamer, do 3D, da arte imersiva e das linguagens das redes sociais. “O visual glitch, o brilho metálico, as formas exageradas e até as roupas ‘impossíveis’ — como vestidos líquidos ou armaduras translúcidas — são fruto dessa fusão de códigos.”
O impacto ambiental da indústria da moda é severo e amplamente documentado: produção de tecidos sintéticos, consumo excessivo de água, uso de produtos químicos, emissão de gases de efeito estufa, condições de trabalho precárias e descarte desenfreado de peças. A fast fashion, modelo de negócios baseado na produção rápida e barata de roupas de curto ciclo de vida, é um dos principais motores dessa crise ambiental.
Ao remover completamente a necessidade de matérias-primas, mão de obra industrial, transporte e descarte físico, a moda digital se apresenta como uma possibilidade real de desacelerar essa engrenagem destrutiva. Roupas virtuais não contribuem para o desmatamento, não exigem costureiras em situação de vulnerabilidade, não geram resíduos em aterros e tampouco demandam longas cadeias logísticas com altos índices de emissões.
“A moda on-line pode ser criada, consumida e descartada com um simples clique. Não há envolvimento de materiais não recicláveis, como poliéster, nem os impactos colaterais associados à cadeia produtiva da moda tradicional”, afirma Dr. Sit. “É uma abordagem com potencial para diminuir significativamente os danos ambientais sem sacrificar a criatividade nem a inovação.”
O estudo também aponta que a alternativa pode ser lucrativa para as marcas. Em um momento em que o setor sofre pressão por responsabilidade ambiental, inovação e engajamento com o público mais jovem, a roupa digital surge como uma solução versátil e rentável. Coleções virtuais podem ser lançadas com custos reduzidos, maior velocidade e alcance global imediato — sem os riscos logísticos ou as perdas por excesso de estoque.
Para os consumidores, o apelo está na exclusividade, na criatividade e na liberdade de experimentar estilos. Roupas digitais podem mudar de cor, de forma e até interagir com objetos físicos por meio de chips Near Field Communication (componentes eletrônicos que permitem a comunicação sem fio de curto alcance entre dispositivos) que cria experiências híbridas entre o mundo real e o virtual. A moda digital oferece um espaço seguro para testes de identidade, especialmente para jovens e usuários de plataformas digitais que desejam expressar diferentes facetas de si mesmos sem recorrer ao consumo desenfreado. “A e-fashion pode funcionar como uma aliada estratégica, diminuindo a dependência de peças de baixo valor e alto volume, e oferecendo novas possibilidades para um setor que precisa urgentemente se reinventar”, destaca Sit.
Três perguntas para Gisele Karassawa, advogada especialista em Direito Digital
Com a alta digitalização, o consumidor pode se afastar do compromisso com a sustentabilidade, por achar que o digital “não polui”?
É importante mencionar que os ativos digitais também impactam o meio ambiente porque as tecnologias como realidade aumentada e renderização em tempo real demandam alto poder computacional, o que se traduz em uma significativa emissão de carbono digital. A criação e a circulação de itens digitais exigem grande uso de energia, especialmente em processos como hospedagem em servidores, gráficos de alta performance e redes blockchain — com destaque para os NFTs, o uso excessivo de skins, filtros e coleções virtuais tem impulsionado uma nova forma de fast fashion no ambiente digital, marcada pela efemeridade estética e pelo descarte simbólico constante. É importante fortalecer iniciativas de literacia digital na população, especialmente entre os jovens.
Quais são os riscos jurídicos mais comuns nesse contexto?
A interoperabilidade de plataformas para o uso de ativos digitais entre uma e outra representa um grande desafio técnico. Essa questão acabou sendo bem endereçada no contexto da Web3 com o a aplicação da tecnologia de blockchain e descentralização, persistindo alguns desafios jurídicos, como os relacionados aos direitos de propriedade intelectual, jurisdição aplicável e Proteção de dados. No que se refere aos direitos de propriedade intelectual, o uso de ativos digitais, como roupas virtuais e skins, pode envolver direitos autorais e marcas registradas. A falta de licenciamento adequado pode gerar disputas entre criadores e plataformas. Há, ainda, a possibilidade de uso irrestrito de itens digitais de marcas conhecidas pode favorecer ações de ambush marketing, (marketing de emboscada), abordagem em que determinada marca não patrocinadora busca se associar a evento ou espaço patrocinado de forma indevida.
Em termos de compliance, que cuidados as empresas de moda devem adotar ao lançar coleções digitais?
Como muitas vezes, o uso acontece no ambiente de games, é importante se atentar especialmente para a proteção de crianças e adolescentes, já que representa importante fatia desse público. É essencial que verifique as ferramentas disponíveis na plataforma para controle etário de acesso, como o age gate. Previne-se a coleta indevida de dados pessoais desse público bem como a realização de ações de merchandising para crianças e adolescentes com elementos do universo infantil, prática condenada pelo Código do Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária.
Grandes mudanças
A combinação entre criatividade e recursos digitais inaugura uma nova era para o vestuário — mais inteligente, consciente e adaptado às mudanças do mundo contemporâneo. Esse momento estimula a transformação acelerada impulsionada pela tecnologia, que apresenta soluções digitais para as roupas em todas as etapas — da criação e produção até a comercialização e consumo.
Os estilistas utilizam inteligência artificial, realidade virtual, impressão 3D e algoritmos para essas inovações que impactam nesse cenário. Com o suporto, são projetadas peças exclusivas, enquanto consumidores passam a ter experiências mais interativas, personalizadas e eficientes.
A digitalização também atinge os processos industriais, e sensores ajudam no controle de qualidade, além das plataformas online, que reduzem os intermediários, aproximando marcas e públicos. Peças duráveis, com menos impacto ambiental, crescem em popularidade. Modelos de negócio baseados em aluguel, revenda e troca ampliam opções. Marcas apostam em transparência para ganhar confiança. Clientes exigem origem clara, respeito socioambiental e responsabilidade.
Essas experiências híbridas, que misturam físico e digital, em apresentações interativas, acabam por favorecer também o surgimento de pequenos criadores se beneficiam dessas ferramentas, as plataformas independentes facilitam o acesso ao mercado global. Influenciadores lançam coleções próprias. Startups exploram nichos ignorados por grandes grupos. Jovens empreendedores trazem inovação, diversidade e novos valores ao setor.
*Estagiária sob supervisão de Renata Giraldi
Discover more from FATONEWS :
Subscribe to get the latest posts sent to your email.