O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, criou o caos e depois o reduziu pela metade para parecer que é normal. Não é — e o estrago já está feito. Uma semana depois de anunciar tarifas de importação com potencial para transformar em escombros o sistema de comércio globalizado, produzir uma crise econômica dentro e fora do seu país e antecipar o possível declínio da supremacia americana, Trump suspendeu, por noventa dias, a parte mais arbitrária do seu pacote protecionista. Por ora, as taxas recíprocas, algumas altíssimas, que haviam sido atribuídas a nações com as quais os Estados Unidos mantêm déficit comercial, foram afastadas e substituídas pelo imposto básico adicional de 10% que produtos do mundo todo precisarão pagar para entrar no país. Trata-se, segundo Trump, de um gesto de boa vontade com quem decidiu não reagir ao tarifaço.

Houve um alívio momentâneo, já que nada parece impedir o presidente americano de voltar à carga. A União Europeia, que havia anunciado contramedidas à taxa inicial de 20% que lhe coube, voltou atrás para aproveitar o “benefício”. Os governos de países como Vietnã e Camboja, que haviam sido contemplados com tarifas recíprocas absurdamente altas, e investidores nas bolsas de valores ao redor do globo, depois de uma semana de pânico, respiraram um pouco aliviados. O gesto de “boa vontade” trumpista só não foi concedido à China, que nas últimas duas semanas se engajou em uma escalada tarifária com os Estados Unidos, disposta a “ir até o fim” para igualar o jogo. Na quinta-feira 10, os produtos da China estavam submetidos à espantosa tarifa de 145% nos Estados Unidos; e os americanos, a uma taxa de 84% na alfândega chinesa.

Ainda que existam muitas incertezas no horizonte, os movimentos erráticos da guerra comercial de Trump produziram uma certeza: o terremoto que o republicano desencadeou nos últimos dias deixará cicatrizes no globo. “O que ele pôs em movimento é o equivalente americano à Revolução Cultural na China (1966-1976), que destruiu o sistema na esperança de construir algo melhor. Não deu certo na China e não vai dar certo com os Estados Unidos”, diz Edward Alden, especialista em política comercial do Conselho de Relações Exteriores, em Washington.
Trump quer reformular a ordem econômica global em termos mais favoráveis para os Estados Unidos e, de quebra, revitalizar a indústria de seu país. Em ambos os casos, as chances de sucesso são quase nulas. De imediato, tudo o que ele conseguiu foi criar o caos e uma perspectiva tenebrosa de retrocesso. Nos últimos 25 anos, o peso das exportações no PIB global variou de 20% a 25%. No início do século passado, estava em 12%. Ou seja, o comércio entre os países ganhou uma importância maior na produção de riqueza. Voltar para o passado significa, literalmente, ficar mais pobre. No futuro próximo, caso Trump mantenha essa mesma disposição bélica, isso vai gerar pobreza para os americanos e para o mundo. O movimento produziu ainda uma grande ironia: enquanto os Estados Unidos erguiam barreiras, a China bateu o bumbo defendendo o livre mercado e reagiu com fina ironia, publicando nas redes uma antiga entrevista de Ronald Reagan na qual o ex-presidente, um dos ícones do liberalismo americano, diz que o tarifaço leva a pobreza, desemprego e guerras comerciais.
O negócio pode piorar ainda mais para os americanos, caso Trump insista em seguir apostando alto no mesmo caminho. Desde o tarifaço, os grandes bancos de investimento elevaram suas expectativas de risco de recessão para os Estados Unidos — com o último recuo de Trump, ocorreu também um recuo nas previsões mais sombrias, mas as nuvens no horizonte persistem. Para o Goldman Sachs, a previsão para o PIB dos Estados Unidos é de um crescimento de 0,5% em 2025, uma queda significativa em relação aos 2,8% do ano passado. A suspensão das tarifas recíprocas mais altas pouco mudou a piora na perspectiva de inflação, por causa do impacto tremendo da taxa de 145% sobre os importados chineses. Nada menos que 73% dos celulares, 78% dos laptops e 77% dos brinquedos no mercado americano vêm da China. Segundo o centro de estudos Tax Foundation, o aumento nos preços vai provocar uma redução de 1,9% na renda líquida da população americana.

A perspectiva de estagnação econômica com alta da inflação cria um dilema para o Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos. Se cortar os juros, como quer Trump, para estimular a economia, a instituição vai aumentar o risco inflacionário. Se fizer o contrário, pode contribuir para desacelerar ainda mais o PIB. “A incerteza em torno das tarifas continua elevada e isso, por si só, já exerce um efeito corrosivo sobre as decisões de investimento e de consumo”, diz Alberto Ramos, economista-chefe do banco Goldman Sachs para a América Latina.

O caos provocado por Trump também ameaça desmantelar a cadeia de produção global. Alguns efeitos disso já são sentidos nos Estados Unidos. A Stellantis, quarta maior fabricante de automóveis do mundo, por exemplo, suspendeu sua produção no Canadá e no México. Empresas petroquímicas chinesas que têm como matéria-prima petróleo liquefeito dos Estados Unidos decidiram fechar suas fábricas temporariamente por causa dos custos elevados, que inviabilizarão o negócio.

Os prejuízos não param por aí. Quase 2 trilhões de dólares em investimentos nos Estados Unidos, que haviam sido anunciados desde a posse de Trump por empresas estrangeiras e locais, estão ameaçados por causa das tarifas. Muitos desses empreendimentos dependem de cadeias de fornecimento que ficam fora do país e que passaram a estar submetidas às tarifas adicionais. Como consequência, em todo o mundo, vagas de emprego são ceifadas em setores exportadores ou que dependem de insumos externos. Mesmo países que poderiam tirar vantagem da rixa tarifária entre americanos e chineses, como o Brasil, estão no escuro. “O maior impacto viria das substituições que os Estados Unidos e a China terão que fazer por consumir menos entre eles”, diz Eduardo Dornelas, economista da consultoria GO Associados. Mas fica difícil fazer planos para aproveitar essas brechas sem saber o que, de fato, vai ocorrer. Por ora, de concreto, só há o prejuízo pela tarifa americana de 25% sobre aço e alumínio, importantes setores exportadores brasileiros.

Só mesmo um país conseguiu reagir ao movimento de Trump na mesma moeda. À primeira vista, parece espantosa a disposição do ditador chinês, Xi Jinping, de responder ao tarifaço com força semelhante. A China tem muito a perder, pois 20% da sua economia depende das exportações, das quais 15% vão para os Estados Unidos. Mas, em meio à bagunça no comércio global desencadeada por Trump, há uma oportunidade para o dragão asiático. Nas últimas décadas, o país se tornou dominante em muitos setores da economia, sendo responsável por mais da metade das exportações globais de mais de 730 produtos, como insumos farmacêuticos, carros, baterias e celulares. O fechamento do mercado americano vai obrigar as empresas chinesas não só a buscar outros mercados, como a levar sua produção para outros países. Também será necessário estimular o consumo doméstico, para dar conta de escoar sua enorme produção. Ao final desse processo, a economia chinesa poderá se tornar mais forte e o mundo estará ainda mais conectado a ela. De quebra, o país vai posar de representante do status quo, em oposição à instabilidade personificada por Trump. Ao semear o caos para colher benefícios incertos no comércio com outros países, o presidente americano pode ter dado um presente ao seu maior rival. Enquanto isso, o restante do mundo prende a respiração à espera dos próximos capítulos da marcha da insensatez iniciada por Trump.
Prejuízos em cadeia
Os efeitos mais profundos e nefastos de uma guerra comercial não ocorrem de imediato. O comportamento das bolsas de valores costuma ser uma amostra do que está por vir. Desde o tarifaço de Trump, em 2 de abril, os principais índices dos pregões desabaram. O S&P 500 e o Nasdaq, dos Estados Unidos, entraram em bear market — termo usado para indicar queda de 20% ou mais nas cotações. O Nikkei, no Japão, chegou a cair mais de 10%, forçando a paralisação das negociações. Em Hong Kong, o índice Hang Seng registrou a pior queda desde a crise asiática de 1997. As bolsas europeias e o Ibovespa também tiveram perdas (veja o gráfico). O “índice do medo”, o VIX, aferido com base nas ações futuras, superou os 60 pontos, um patamar de volatilidade visto apenas na crise de 2008 e no colapso da pandemia de covid-19.
Não se trata de um medo irracional. As tarifas elevadas terão como consequência mais óbvia a redução das trocas comerciais, com corte na produção. “As empresas vão lucrar menos e, com isso, passam a valer menos”, diz Marcus Macedo, diretor de investimentos do Andbank, banco de gestão de fortunas.
Ainda que as quedas após o anúncio das tarifas adicionais dos Estados Unidos tenham sido mais acentuadas, o pessimismo já havia ganhado força antes, quando Trump deu os primeiros passos protecionistas contra México, Canadá e setores específicos, como os de aço e alumínio. Desde sua posse, em janeiro, as bolsas americanas perderam mais de 10 trilhões de dólares em valor — cinco vezes o PIB do Brasil. As “sete magníficas” do setor tecnológico (Apple, Microsoft, Amazon, Alphabet, Nvidia, Meta e Tesla) perderam juntas 4,2 trilhões de dólares. Algumas empresas têm sido mais castigadas por depender mais das cadeias globais de produção. É o caso da Apple, que produz 90% dos iPhones no exterior, principalmente na Ásia, onde ficam os países inicialmente mais penalizados por Trump. O tarifaço também balançou o mercado de commodities, que reflete a saúde econômica global. O petróleo recuou ao menor nível em quatro anos, e o minério de ferro, em seis meses, afetando as ações da Petrobras e da Vale.
As bolsas recuperaram parte das perdas depois que Trump suspendeu por noventa dias as tarifas mais altas, na quarta-feira 9, mas foi um alívio ilusório. A destruição em curso da ordem do comércio mundial certamente gerará novas turbulências.
Publicado em VEJA de 11 de abril de 2025, edição nº 2939
Discover more from FATONEWS :
Subscribe to get the latest posts sent to your email.