Resquícios submersos de estearias, casas suspensas sobre o rio, em duas faixas no leito do Turiaçu, no sítio arqueológico de Jenipapo, na Baixada Maranhense, que revelam, no passado, a presença de uma grande comunidade indígena, foram identificados graças ao uso pioneiro de radar de penetração do solo (GPR) em meio aquático. A análise foi feita por cientistas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em parceria com a Universidade de São Paulo (USP). O trabalho, publicado no Journal of Archaeological Science: Reports, agrega ao conhecimento sobre povos indígenas pré-colombianos que viviam na região.
A aplicação do GPR é orientada por Jorge Porsani, geólogo do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. Ele coloca o aparelho em um barco, que faz a ronda na área desejada. Foram analisadas 12 diferentes faixas de 495m de comprimento, cada, no Rio Turiaçu, próximas à cidade de Santa Helena.
O GPR emite ondas eletromagnéticas em direção à superfície alvo, no caso, o leito e o fundo do rio. Em contato com materiais e estruturas diferentes, o sinal sofre alterações ao ser refletido. Picos de mudança na reflexão são chamados de hipérboles de difração. Elas indicam a presença de pontos elevados de madeira mergulhados que correspondem aos pilares que sustentavam as casas antigas, os esteios.
Francisco Pugliese, pesquisador do Núcleo de Arqueologia Indígena da Universidade de Brasília (UnB), reforça o papel complementar dessa tecnologia na exploração de sítios arqueológicos. No caso de Jenipapo, ela deve orientar buscas durante o período de cheias, em que a profundidade da água atinge cerca de três metros.
Em explorações feitas durante o período seco, foram encontrados adornos de potes, vasos e um cachimbo de cerâmica. Com o uso do GPR, é possível aumentar esse acervo, que abarca assentamentos de 1 a 1.100 d.C. Alexandre Navarro, coordenador do Laboratório de Arqueologia (Larq) da UFMA e responsável pela pesquisa, afirma que a imersão em água pode ser benéfica para a conservação dos objetos. “Muitas vezes, a pintura em potes continua muito nítida, pois a areia acaba selando a tinta”, ressalta o autor.
Conexões
A sondagem com GPR indica disposição linear dos pilares nas faixas onde as hipérboles de difração se concentram. Portanto, as estearias (sítios arqueológicos formados pela concentração de esteios de troncos de árvores colocados no leito dos rios e lagos) acompanhariam, até certo ponto, o curso do rio. Conhecer as formas de assentamentos como esse é uma informação crucial para identificar a origem étnica de um povo, de acordo com Pugliese.
Essa informação, associada aos objetos encontrado sem estudos anteriores em Jenipapo e sítios próximos, reforça a hipótese de que os povos da região seriam de origem Karib. Esse grupo abrange etnias indígenas da Guiana, Suriname e norte do Pará. Apesar dos indícios, ambos arqueólogos afirmam serem necessárias outras etapas de pesquisa para definir com exatidão a etnia que ocupava a região.
(foto: LARQ, UFMA)
Outros achados arqueológicos da Baixada Maranhense sugerem uma rede de trocas extensa entre os pré-colombianos das Américas do Sul e Central, o que reforça a cautela na análise. Navarro destaca o acervo encontrado no sítio de Formoso – que se aproxima da cultura Arawak – e um adorno de jade (muiraquitã) encontrado no Boca do Rio – que remete a estilos Karib, de Santarém, Konduri ou Arawak – como exemplos da variedade de relações possíveis no território.
“Compreender que povos estavam lá e sua relação com os povos atuais é a pergunta que todos gostaríamos de responder, mas é uma longa discussão que exige mais estudos: afinal, é um recuo de tempo de mais de mil anos”, considera Pugliese.
Similaridades e rupturas
Os arqueólogos percebem uma herança técnica, mas diferenças fundamentais de constituição física e representação social desses assentamentos em relação às palafitas atuais. Para Pugliese, é relevante pensar a continuidade entre a sociedade do presente e esses povos. “Diversos elementos que garantiam a sustentabilidade dos assentamentos antigos devem ter contribuído para a forma de ocupação ribeirinha amazônica que existe hoje”, reflete.
Navarro, por sua vez, ressalta o uso da madeira de ipê nos esteios, o que indica estruturas mais resistentes do que as atuais. A diferença de qualidade aponta também estruturas sociais distintas dos dois tipos de agrupamento. “As palafitas de hoje são, em geral, resultado de processos de exclusão em cidades, algo totalmente diferente das estearias”, afirma.
O pesquisador da UFMA ressalta o sentido comunitário forte dos assentamentos ribeirinhos como fundamento social dos povos pré-colombianos. A localização estratégica ao longo do rio também demonstra o aproveitamento tático de recursos e seu uso habilidoso para o intercâmbio entre comunidades e povos de outras etnias. “A disposição que acompanha a corrente mais forte do rio provavelmente permitia uma locomoção mais fácil com as canoas, além de ser uma boa faixa para capturar peixes”, explica.
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