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Às vésperas de um dos momentos mais decisivos para a Igreja Católica — o conclave que escolherá o próximo papa —, uma campanha de desinformação orquestrada por setores ultraconservadores ligados ao ex-presidente Donald Trump tenta minar as chances dos cardeais considerados herdeiros espirituais da agenda reformista de Francisco. Os ataques, concentrados em sites como LifeSiteNews e CatholicVote.org, evidenciam como a fé tem sido instrumentalizada por interesses políticos transnacionais. O alvo: impedir que a Igreja mantenha seu curso progressista e humanista em temas como imigração, inclusão e justiça social.
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Um dos principais alvos dessa ofensiva digital é o cardeal filipino Luis Antonio Tagle, tido por vaticanistas como um dos nomes fortes para a sucessão de Francisco. Em um vídeo editado pelo LifeSiteNews, Tagle aparece cantando a música Imagine, de John Lennon — apresentada no site como uma “traição” aos ensinamentos católicos por se tratar de um “hino ateu”. O detalhe omitido pelo vídeo viral — que ultrapassou 1 milhão de visualizações entre grupos conservadores — é que se tratava de uma versão modificada, sem o trecho que menciona um mundo sem religiões.
O site canadense responsável pela edição já havia sido banido do Twitter e do YouTube por espalhar desinformação sobre a pandemia de covid-19, além de teorias da conspiração sobre as eleições americanas de 2020. Em comum com outras plataformas ligadas à extrema direita, ele opera com base em cortes de contexto, retórica emocional e ativismo digital em larga escala.
Parolin também na mira da desinformação
Outro nome cotado para o papado, o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, foi alvo de uma notícia falsa divulgada pelo site CatholicVote.org, segundo a qual ele teria sofrido um desmaio durante uma reunião interna. A Santa Sé desmentiu imediatamente a informação, mas o dano simbólico já estava feito. O caso chamou a atenção para uma estratégia deliberada de manipulação da opinião pública religiosa às vésperas do conclave.
A ironia é que as fontes italianas supostamente usadas pelo CatholicVote para validar a informação — como o Il Giornale e Virgilio Notizie — citavam o próprio site americano como origem. Ou seja, tratava-se de uma circularidade planejada para dar aparência de veracidade a uma fake news — uma tática já descrita por estudiosos da desinformação, como o professor Yochai Benkler, da Universidade de Harvard, no livro Network Propaganda (Oxford University Press, 2018).
A geopolítica da fé
Fundado por Brian Burch — indicado por Trump como seu embaixador na Santa Sé —, o CatholicVote representa mais que um portal de opinião: é o braço religioso de uma estratégia política ultraconservadora. Burch é conhecido por criticar abertamente o papa Francisco, a quem acusa de “populismo moral” e de “semear confusão” na doutrina ao abrir espaço para bênçãos a casais LGBTQIA+ e questionar o fechamento de fronteiras.
Ao ser anunciado por Trump, Burch foi descrito como “um católico devoto, pai de nove filhos e presidente da maior organização de defesa católica dos EUA”. Em sua declaração oficial como novo embaixador, omitiu qualquer menção ao papa e declarou seu compromisso com “o bem comum” e “a dignidade de todas as pessoas” — termos amplos o suficiente para abrigar uma agenda própria, divorciada da orientação da atual liderança do Vaticano.
Desde 2009, o CatholicVote investiu mais de 2 milhões de dólares em campanhas de parlamentares republicanos, apoiou judicialmente a reversão do direito ao aborto e se aliou a Steve Bannon em projetos de microsegmentação digital para influenciar o voto católico — incluindo o rastreamento de celulares nas igrejas para envio de mensagens personalizadas, conforme revelou The Guardian em 2018.
O conclave como campo de batalha
A tentativa de influenciar o conclave — ainda que formalmente fechado à ação externa — revela o quanto a eleição do próximo papa se tornou também uma disputa política global. A escolha do sucessor de Francisco pode consolidar ou desmontar reformas consideradas centrais para uma Igreja mais aberta, solidária e atenta às urgências sociais do mundo contemporâneo.
Temas como acolhimento a migrantes, justiça ambiental, diálogo inter-religioso e inclusão de fiéis LGBTQIA+ têm se tornado bandeiras do atual pontificado. Francisco tem buscado recolocar a Igreja no centro do debate humanitário global, enfrentando resistências de uma parte do clero e de setores políticos que veem sua atuação como obstáculo à hegemonia conservadora.
Como observa o sociólogo Massimo Faggioli, especialista em Vaticano e professor da Villanova University, nos EUA: “Há uma tentativa clara de fazer do catolicismo um instrumento da guerra cultural conservadora. O que está em jogo não é apenas a Igreja, mas o papel dela como consciência moral do Ocidente” (The Washington Post, 2021).
A fé em tempos de fake news
A campanha contra Tagle e Parolin, articulada por veículos trumpistas, confirma um padrão: a desinformação não escolhe alvos aleatórios — ela é projetada para enfraquecer valores que ameaçam projetos autoritários. A politização da fé não é nova, mas ganha nova roupagem com a radicalização digital e a ascensão de lideranças populistas que usam símbolos religiosos para justificar retrocessos democráticos.
Diante disso, o conclave que se aproxima será mais do que uma eleição papal: será também um veredito sobre o futuro moral da Igreja e seu papel no mundo. Que Deus — e os cardeais — nos ajudem.
Crise à vista: futuro papa herdará Igreja endividada e cúpula dividida
O sucessor de Francisco não herdará apenas a missão espiritual de liderar 1,3 bilhão de católicos. Herdará também uma Igreja com déficit financeiro em escalada, um fundo de pensão em colapso e uma estrutura administrativa mergulhada em disputas entre reformistas e conservadores. Com o conclave marcado para 7 de maio, cardeais de 71 países se reúnem em Roma não apenas para escolher um novo papa, mas para decidir o futuro de um projeto de Igreja mais transparente, humanista e global — ou o retorno a uma gestão marcada por hierarquias rígidas e privilégios.
Apesar de esforços de austeridade implementados pelo papa Francisco, o Vaticano encerrou 2024 com um déficit de 87 milhões de dólares, mais do que o dobro do registrado em 2022, quando o buraco era de US$ 35 milhões. O dado, ainda não oficialmente publicado pela Santa Sé, circula entre cardeais reunidos em Roma e preocupa pela velocidade do crescimento do passivo.
A crise, porém, é mais profunda do que as contas anuais revelam. O fundo de pensão da Igreja, responsável por sustentar milhares de religiosos aposentados em todo o mundo, acumula um déficit estimado em 631 milhões de euros, sem solução clara à vista. Embora Francisco tenha proposto recorrer a fontes externas de financiamento, o temor de conflitos de interesse com instituições privadas travou a proposta.
As doações de fiéis, historicamente uma das principais fontes de receita, mantiveram-se estáveis na última década — cerca de 45 milhões de euros por ano —, mas são insuficientes diante das despesas crescentes da Cúria. Ao contrário de Estados soberanos, o Vaticano não pode emitir dívida nem cobrar impostos. Seu principal trunfo financeiro continua sendo seu portfólio de 5.000 propriedades imobiliárias, cujos rendimentos em 2024 somaram 45,9 milhões de euros — ainda assim, abaixo das necessidades operacionais.
Pandemia, cortes e resistência interna
A crise foi intensificada pela pandemia da covid-19, que afetou drasticamente a receita turística do Vaticano, sobretudo com o fechamento dos museus e atrações religiosas. Ao mesmo tempo, o governo Donald Trump — em confronto aberto com o papa — reduziu financiamentos a instituições católicas internacionais, obrigando a Santa Sé a socorrer dioceses em situação crítica, inclusive nos Estados Unidos.
Francisco, ciente das pressões, iniciou uma série de medidas de austeridade sem precedentes. Em março de 2021, reduziu em 10% o salário dos cardeais, que girava em torno de 5.000 euros mensais. Em 2023, cortou os subsídios de moradia em Roma e, um ano depois, reduziu mais uma vez os salários e os orçamentos pessoais dos cardeais para contratar assistentes e secretários. Em setembro de 2024, lançou o plano de déficit zero, cortando gastos nos meios de comunicação da Santa Sé. Já hospitalizado em 2025, continuava buscando soluções, criando uma comissão internacional de arrecadação de doações.
Uma sucessão sob tensão
Ao lado da crise econômica, a eleição do novo papa ocorre em um ambiente político polarizado dentro da Igreja. Francisco nomeou 108 dos 135 cardeais com direito a voto, o que, em tese, garantiria a continuidade de sua agenda reformista. Mas fontes em Roma revelam que nem todos compartilham da mesma visão e que a coesão da ala progressista está longe de ser garantida.
A ala conservadora, por sua vez, articula-se em torno da ideia de restaurar uma “Igreja segura”, com menos ambiguidade doutrinária e mais foco em autoridade clerical. Um de seus lemas é reverter a “confusão” causada por Francisco em temas como imigração, bênçãos a casais do mesmo sexo e abertura ao diálogo inter-religioso.
Em resposta, o cardeal italiano Baldassare Reina fez um apelo contundente em sua homilia nesta semana: “Este não pode ser o momento de ceder ao instinto de voltar atrás […], mas o que é necessário é uma disposição radical para entrar no sonho de Deus confiado às nossas pobres mãos”. A declaração foi interpretada como um chamado à união dos reformistas para evitar uma regressão no pontificado.
Entre a fé e o poder: o que está em jogo
O conclave que se aproxima não escolherá apenas um líder espiritual. Escolherá a resposta da Igreja Católica a um conjunto de dilemas contemporâneos: como sustentar uma estrutura global sem renunciar à ética? Como conciliar tradição e inclusão? Como reagir à instrumentalização política da fé por forças populistas e autoritárias, como as que atuam hoje nos EUA, Polônia e partes da África?
Como lembra o historiador John W. O’Malley, especialista em história da Igreja e professor da Universidade de Georgetown: “Os concílios e conclaves sempre foram momentos de decisão não apenas sobre doutrina, mas sobre o tipo de Igreja que o mundo verá nos próximos séculos” (What Happened at Vatican II, Harvard University Press, 2008).
O próximo papa terá a difícil missão de retomar o controle das finanças da Santa Sé e de preservar o legado de Francisco num mundo dividido — inclusive dentro das muralhas do Vaticano.
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