Dado é de dinheiro bruto repassado aos magistrados de tribunais estaduais, federais, do trabalho, eleitorais e conselhos; há casos de remunerações de mais de R$ 1 milhão
Juízes e desembargadores de tribunais estaduais, federais, eleitorais, do trabalho e de conselhos ganharam salários brutos mensais acima de R$ 100 mil pelo menos 63.816 vezes em 2024, de acordo com dados de contracheques disponíveis no sistema do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Esses montantes foram pagos porque, além dos salários, alguns funcionários do Judiciário recebem indenizações, direitos eventuais e auxílios diversos. Esses chamados penduricalhos permitiram em 2024 que as remunerações mensais chegassem a valores de mais de R$ 1 milhão em 28 casos.
É comum em Brasília que funcionários públicos sempre se refiram aos valores líquidos para falar quanto ganham –ou seja, aquilo que cai na conta bancária depois de pagamentos de impostos e outros encargos. Ocorre que o que conta para o Estado (assim como em empresas privadas) é o valor total desembolsado.
Mas mesmo quando se considera o salário líquido recebido por integrantes do Judiciário, o número de pagamentos acima de R$ 100 mil é de expressivos 35.483. Isso se dá por causa de descontos previdenciários, de Imposto de Renda e eventuais retenções de valores quando os montantes não se enquadram nas normas constitucionais.
Esses números de salários acima de R$ 100 mil são maiores do que foi possível o Poder360 apurar. Ao menos 21 tribunais têm falhas no registro das informações em pelo menos 1 mês de 2024. O CNJ afirma já ter notificado os órgãos do Judiciário no final de 2024 para que revisassem os dados enviados e resolvessem possíveis inconsistências.
“Muitos pagamentos de passivos são relativos a decisões judiciais que deram ganho de causa a esses profissionais para o pagamento desses valores”, diz o conselho, que afirma que a Corregedoria Nacional de Justiça “tem procedimento para auditar todos esses pagamentos a fim de certificar a legalidade”.
OS QUE MAIS GANHARAM
O Tribunal de Justiça de Rondônia (um dos Estados mais pobres do país) pagou 27 supersalários acima de R$ 1 milhão em fevereiro de 2024 e 1 outro acima desse valor em outubro. A média mensal de pagamentos brutos (já tirando eventuais retenções) no ano passado foi a maior entre todos os tribunais estaduais: R$ 126,5 mil, de acordo com os últimos dados disponíveis.
Outro tribunal que teve pagamentos acima de R$ 100 mil foi o de Santa Catarina. Em média, os desembargadores receberam salários mensais brutos de R$ 119,8 mil no ano passado. Completando o top 3 de maiores salários, vem o TJMS (de Mato Grosso do Sul), com remunerações mensais de R$ 118,6 mil em média.
Os dados usados nesta reportagem são do CNJ, baixados em 14 de fevereiro de 2025, e podem ter leves variações de acordo com atualizações enviadas pelos próprios tribunais ao longo do tempo. Os números abaixo são a média de pagamentos –quando se pega o valor total repassado (já sem as retenções) e divide essa cifra pela quantidade de pagamentos efetuados.
O CNJ pediu explicações em maio de 2024 sobre os supersalários do TJ de Rondônia. Mas a investigação não deu em nada até agora. Eis a íntegra da decisão (PDF – 56 KB).
Além desses casos, outros 127 juízes e desembargadores ganharam de R$ 500 mil até R$ 1 milhão de forma bruta no ano passado.
Nos tribunais federais, a média de salário bruto e penduricalhos dos magistrados ficou perto dos R$ 70.000 mensais:
Há também o STM (Superior Tribunal Militar) e tribunais separados para a área militar em 3 Estados (MG, RS e SP). A média de salário bruto e penduricalhos nesses casos variou de R$ 90,9 mil a R$ 121,8 mil.
Vários estudos recentes têm apresentado estatísticas sobre o peso do Judiciário brasileiro. Sob qualquer ângulo que se observa, o custo parece assimétrico com outras áreas do governo de um país ainda em desenvolvimento e com muitas carências. Uma estimativa de relatório do Tesouro Nacional é que o gasto com Judiciário brasileiro equivale a 1,6% do PIB.
Esse percentual é incomum em países desenvolvidos. Por exemplo, Reino Unido (0,44% do PIB), Itália (0,34%), Suíça (0,29% e França (0,25%) têm custos bem menores proporcionalmente.
O Poder Judiciário fez 322 mil pagamentos em 2024 para seus 18.910 magistrados efetivos e para alguns inativos que ainda tinham direitos a receber (incluindo algumas gratificações), além de gratificações por trabalho em conselhos e tribunais eleitorais. Desse total, 76% foi acima do estabelecido pelo teto constitucional que estava válido em 2024.
Além dos salários, foram pagos ao menos R$ 12,8 bilhões em remunerações descritas como “direitos pessoais”, “indenizações” e “direitos eventuais”, que incluem desde férias não tiradas a dinheiro extra por acúmulo de processos e auxílios diversos.
O Poder360 entrou em contato por e-mail com todos os tribunais citados nesta reportagem. Os que responderam, falaram que os recebimentos são legais e estão disponíveis de forma transparente para todos. Leia a íntegra das respostas (PDF – 96 KB).
SUPERSALÁRIOS E PENDURICALHOS
A remuneração de juízes e desembargadores, na teoria, pode chegar até o teto do funcionalismo público –que é definido pelo salário de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e representava até fevereiro de 2025 um valor de R$ 44.008,52. Essa cifra foi a que valeu em 2024. Depois, houve reajuste e o valor subiu para R$ 46.366,19 e é o que será considerado para os salários de março de 2025 em diante. O limite foi estabelecido pela EC (emenda constitucional) 19 de 1988, que criou a figura do “subsídio”. Definiu que o pagamento deveria ser feito em parcela única e observar o teto remuneratório.
Em 2005, no entanto, uma nova emenda (EC 47 de 2005) enquadrou fora desse limite pagamentos que tivessem caráter “indenizatório”. Ou seja, aqueles relacionados a uma ideia de compensação de gastos. Podem ir desde auxílio-alimentação, auxílio-transporte e ajuda de custos com mudança até custeio de diárias em viagens a trabalho.
O dispositivo permitiu que as carreiras jurídicas e do Ministério Público na União e nos Estados criassem uma série de “vantagens pecuniárias” dentro da classificação indenizatória, mas que não necessariamente representam compensações.
Convencionou-se chamar de “penduricalhos” esses adicionais incluídos fora do teto de remuneração estabelecido pela Constituição e ainda isentos de impostos.
Entraram-se sob o guarda-chuva adicionais e gratificações, férias não usufruídas, abonos e licenças-prêmio, por exemplo. É o que explica a professora de direito da FGV (Fundação Getulio Vargas) e integrante do Movimento Pessoas à Frente, Vera Monteiro.
“Na prática, é uma tentativa de legalizar todas as vantagens pecuniárias como sendo vantagens legítimas e que não incidem em Imposto de Renda, porque são valores que seriam considerados como mera compensação de gastos efetuados, e não remuneração. O problema é que essas entidades colocaram dentro dessa mesma classificação indenizatória um conjunto de situações muito diferentes entre si. É o que ficou conhecido como penduricalhos”, declarou em entrevista ao Poder360.
Os penduricalhos são autorizados pelo próprio Judiciário, que tem autonomia para distribuir o próprio Orçamento. “Eles se autoatribuíram essa capacidade de definir o que é caráter indenizatório e remuneratório, por norma do CNJ, e evidentemente eles fizeram essas definições de maneira bastante ampliada e aí você encontra certas vantagens pecuniárias que de indenizatórias não têm nada”, completou.
Já para Cristiano Pavini, coordenador de Projetos da Transparência Brasil, a legalidade de “muitos desses penduricalhos é contestável”, porque o Judiciário e o Ministério Público “criam ou flexibilizam o pagamento de benefícios por meio de atos administrativos, sem amparo expresso na legislação”.
“O principal modus operandi é transformar benefícios que são de natureza remuneratória, portanto limitados ao teto constitucional, em indenizações, que escapam ao teto. Um dos exemplos mais recentes é o da licença-compensatória, que é um desvirtuamento da gratificação por exercício cumulativo e, apenas no Judiciário, já custou R$ 1 bilhão em menos de 2 anos”, afirma Pavini.
BARROSO MINIMIZA
O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Roberto Barroso, minimizou os penduricalhos em 3 de fevereiro e disse que há críticas “injustas” aos gastos do Judiciário com os adicionais salariais. Afirmou que algumas remunerações extras têm justificativa legal e são necessárias para compensar o volume de trabalho dos juízes.
O ministro tentou justificar o acréscimo nos salários dos magistrados brasileiros argumentando que eles lidam com um volume de processos “acima da média global” e, por isso, recebem uma indenização.
No que diz respeito só ao Supremo, os gastos com pessoal (pagamento de salários) consumiram 59% do Orçamento de 2023 –último dado disponível. Eis a íntegra (PDF – 23 MB).
Para 2024, a proposta orçamentária foi de R$ 897,6 milhões. Segundo Barroso, as maiores fontes de despesa da Corte são com pessoal, segurança, tecnologia da informação e custos da TV Justiça e Rádio Justiça. O Supremo é composto por 11 ministros e 1.200 funcionários.
Em comparação, a Família Real britânica teve um orçamento de R$ 645,1 milhões em 2024, na cotação de 21 de fevereiro. A realeza conta com 1.133 funcionários, de acordo com um levantamento da publicação Business Insider de 2022.
Os dados de Orçamento da realeza britânica estão disponíveis no site oficial da monarquia. Eis a íntegra do último relatório (PDF – 50 MB), com os dados de 2023 e 2024.
Em 2022, o STF criticou a comparação de seus custos com os gastos da Família Real britânica, declarando não “fazer sentido” porque o papel de cada instituição é “completamente diferente”.
A Corte disse que as despesas são planejadas e classificadas segundo critérios objetivos de prioridade. Informou que a execução orçamentária é “feita de forma absolutamente transparente, com informações disponíveis na página de transparência do tribunal na internet”.
METODOLOGIA
O Poder360 baixou os dados de salários de juízes e desembargadores na base de remunerações do CNJ em 14 de fevereiro de 2025. As informações podem variar de acordo com a data em que foram compiladas porque os tribunais conseguem revisar os valores enviados –caso constatem algum erro.
As informações de salário médio + “penduricalhos” de juízes não inclui o pagamento de diárias. Foi usada a coluna “total de rendimentos” e subtraídos os valores retidos por algum motivo para compilar as faixas de valores recebidos mensalmente pelos magistrados –há alguns inativos na base de dados e não é possível diferenciar dos ativos.
“O total de rendimentos passa por todos os descontos previstos (Imposto de Renda, previdência pública, retenção por teto constitucional) para se chegar ao valor líquido a ser recebido pelo magistrado. Destacamos que nem todos os rendimentos são passíveis de desconto por teto constitucional, a exemplo do auxílio-alimentação e outras de caráter indenizatório”, declarou o CNJ.
O conselho disse ter oficiado os tribunais no final de 2024 para que revisassem as informações enviadas no período de 2017 a novembro do ano passado e resolverem possíveis inconsistências. Não se sabe, no entanto, quais órgãos finalizaram essa checagem.
Todas as informações, com os salários e penduricalhos de cada magistrado, estão disponíveis no site do CNJ.
DESIGUALDADE
O Anuário de Gestão de Pessoas no Serviço Público 2024, elaborado pela República.org, indica que os supersalários são uma das principais fontes de desigualdade remuneratória dentro da administração pública brasileira. Leia a íntegra (PDF – 43 MB).
A organização destaca a desproporcionalidade salarial como um dos fatores para a assimetria. Explica que, apesar de menos de 1% dos funcionários públicos receberem acima do teto do funcionalismo (dados de 2022), as indenizações –que fazem os salários serem “super”– custaram R$ 33 bilhões aos cofres públicos de 2019 a 2023. Segundo dados do Movimento Pessoas à Frente, só em 2023 foram R$ 11,1 bilhões. Leia a íntegra (PDF – 6 MB).
O custo do Judiciário pesa nas contas públicas. Em 2023, as despesas somaram R$ 132,8 bilhões e bateram recorde. As informações fechadas de 2024 ainda não estão disponíveis.
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