Israel concordou com a realização de “pausas limitadas” nos combates na Faixa de Gaza para permitir que funcionários de saúde das Nações Unidas apliquem vacinas contra a poliomielite para centenas de milhares de crianças no território, informou a Organização Mundial da Saúde (OMS) nesta quinta-feira. A medida foi tomada após um bebê contrair o primeiro caso confirmado da doença em 25 anos no enclave. O Hamas também acolheu o pedido da ONU, informou Basem Naim, um funcionário do grupo terrorista, à Reuters, acrescentando que o grupo está pronto para cooperar com as organizações internacionais.
Descritas como “pausas humanitárias”, elas durarão três dias em diferentes partes da região. Segundo Rik Peeperkorn, o principal representante da OMS nos territórios palestinos, a campanha de vacinação começará no domingo no centro de Gaza. Depois, outra pausa de três dias será feita no sul do enclave, e depois outra no norte. Com objetivo de vacinar 640 mil crianças com menos de 10 anos, Peeperkorn acredita que os funcionários poderão precisar de dias adicionais.
— Acho que este é um caminho a seguir. Não vou dizer que é o caminho ideal, mas é um caminho viável. Não fazer nada seria realmente ruim — disse, acrescentando que a campanha foi coordenada com as autoridades israelenses. — Temos que interromper essa transmissão em Gaza e evitar a transmissão fora da Faixa de Gaza.
Essas pausas humanitárias não são um cessar-fogo entre Israel e o grupo terrorista Hamas, algo que mediadores dos Estados Unidos, Egito e Catar buscam há muitos meses — inclusive em negociações que seguem em andamento nesta semana. A ofensiva israelense será temporariamente suspensa das 6h às 15h em uma área designada enquanto as vacinas forem administradas, afirmou Peeperkorn, o representante da OMS.
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Dois funcionários israelenses, que falaram com o New York Times sob condição de anonimato porque não estavam autorizados a se comunicar com a mídia, confirmaram que o governo havia concordado com pausas nos combates por várias horas em áreas específicas onde as vacinas serão distribuídas. A aplicação da vacina será escalonada, começando pela região central de Gaza antes de transitar para outras partes do território.
Israel deixou claro que a medida não é um primeiro passo para um cessar-fogo, e que os combates não serão interrompidos em todo o enclave, mas que haverá pausas limitadas em locais específicos. O governo israelense tem estado sob intensa pressão das autoridades de saúde internacionais há dias, especialmente após o anúncio de que um bebê de onze meses contraiu a doença. A notícia, emitida no início deste mês, levou o secretário-geral da ONU, António Guterres, a pedir uma trégua temporária de duas semanas para as vacinações.
A OMS garantiu 1,26 milhão de doses de vacinas da Indonésia para proteger os receptores contra o poliovírus tipo 2, e as unidades chegaram ao enclave nesta semana. Embora a doença tenha sido erradicada na maior parte do mundo na década de 1990, trabalhadores de ajuda humanitária disseram que as condições severamente insalubres em Gaza durante os dez meses de guerra de Israel contra o Hamas, combinadas com o deterioramento dos serviços de saúde, criaram um ambiente no qual até mesmo doenças raras podem se espalhar.
A grande maioria das crianças em Gaza — cerca de 95% — foi vacinada contra outros dois tipos de poliomielite que fazem parte das imunizações de rotina em todo o mundo, disseram os funcionários.
Crianças em Gaza
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Mais de 2,1 mil profissionais de saúde e trabalhadores comunitários devem ajudar a administrar as doses em várias centenas de locais em Gaza, que consistem em uma ou duas gotas de vacina tomadas por via oral. O imunizante deve ser seguido por um reforço quatro semanas depois, e Peeperkorn disse que o acordo anunciado nesta quinta-feira abriu caminho para que isso também aconteça. Ele declarou esperar que “todas as partes cumpram esse compromisso”.
Sem uma trégua à vista, autoridades de saúde afirmaram na semana passada que temiam que a equipe médica e os palestinos corressem riscos de bombardeios, combates urbanos ou ordens para deslocamento durante a vacinação. Os riscos crescentes no território levaram a própria ONU a anunciar nesta segunda-feira a interrupção de suas operações de ajuda humanitária na região. A medida tomada pela organização não significou a retirada total das equipes.
Para além do receio dos combates, outra questão preocupou as equipes e órgãos de saúde: os problemas de infraestrutura decorrentes do conflito. Serão pelo menos 400 postos destinados à vacinação, e a coordenadora do programa pelo Ministério da Saúde em Ramallah, Nancy Falah, afirmou à Rádio al-Shams em Nazaré, citada pelo jornal israelense Haaretz, que a pasta forneceu refrigeradores e instalações de armazenamento para Gaza a serem instalados nesses pontos.
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Apesar disso, um funcionário da pasta disse ao Haaretz que não há condições para que a campanha ocorra, uma vez que quase toda a infraestrutura médica do enclave foi destruída. Até o dia 20 de agosto, a OMS registrou 505 ataques à saúde do enclave, que resultaram em 32 hospitais e 63 ambulâncias danificadas. Do total de 36 unidades de saúde, apenas 16 funcionam parcialmente, informou Jonathan Crickx, porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Há ainda os temores quanto à garantia do fornecimento de energia, pensando na refrigeração das doses. Entre as 36 unidades de saúde do enclave, apenas 11 conseguem garantir a continuidade da cadeia de frio. Os outros não têm combustível nem geradores potentes o suficiente para compensar a total falta de eletricidade, uma vez que a única central elétrica de Gaza foi desligada e a conexão com Israel foi cortada.
Durante meses, as Nações Unidas e várias ONGs manifestaram preocupação com a situação sanitária no território palestino, onde água parada, montanhas de escombros e lixo, calor opressivo e falta de espaço criam um terreno fértil ideal para epidemias. No mês passado, foi anunciado que o poliovírus tipo 2 havia sido detectado em amostras coletadas em Gaza em 23 de junho.
O poliovírus, mais frequentemente disseminado por esgoto e água contaminada, é altamente infeccioso. Pode causar deformidades e paralisia, e é potencialmente fatal. Afeta principalmente crianças menores de 5 anos.
Alerta para outras doenças
Segundo a organização Oxfam, um quarto da população de Gaza já foi afetada por doenças transmitidas por água contaminada.
— Estamos vendo uma crise de saúde catastrófica se desenrolar diante de nossos olhos — disse Lama Abdul Samad, especialista em água e saneamento da Oxfam, em entrevista à BBC árabe. — A infraestrutura de saneamento foi severamente danificada a ponto de inundar as ruas e os bairros, e as pessoas estão basicamente vivendo ao lado de poças de esgoto.
Imagens de satélite analisadas pela BBC árabe mostram o avanço do esgoto não tratado em áreas que antes eram limpas, como a lagoa Sheikh Radwan, no norte de Gaza. Palestinos que vivem nas proximidades denunciaram à filial da rede britânica o transbordamento de águas com dejetos, além do mau cheiro e da presença de roedores nos arredores da lagoa.
O retorno do pólio é apenas uma fração da crise de saúde pública que atinge Gaza. No início do mês, a agência da ONU para refugiados palestinos (UNRWA, na sigla em inglês) relatou 40 mil casos de hepatite A, que também pode ser transmitida pela ingestão de água contaminada, em quase um ano de guerra. No período anterior, apenas 85 haviam sido registrados.
Autoridades de saúde também colocaram a região em estado de alerta para a cólera, transmitida por contaminação contato direto com dejetos humanos ou pela ingestão de água ou alimentos contaminados.
Segundo agências de ajuda humanitária que atuam no enclave, os médicos de Gaza também estão lidando com o desafio de tratar um grande número de casos de disenteria, pneumonia e doenças de pele graves devido ao colapso sanitário.
Em entrevista à BBC, o pediatra Ahmed al-Farra elencou uma série de fatores que estão por trás do problema, como a “mistura de água subterrânea limpa e esgoto, a superpopulação severa, o calor extremo, a falta de ventilação, as tendas superpovoadas e o compartilhamento excessivo de banheiros”.
Com a maior parte dos 2,3 milhões de habitantes de Gaza forçados a se deslocar para fugir dos bombardeios nos últimos onze meses, muitos vivem em abrigos em que um banheiro é compartilhado por até 600 pessoas, segundo a Organização Mundial da Saúde.
(Com AFP e New York Times)