Com todos os alertas em nível máximo para uma possível retaliação do Irã à morte do então chefe do Gabinete político do Hamas, Ismail Haniyeh, e a continuidade das ações militares em Gaza, integrantes da comunidade internacional tentam transformar a crise em um momento de saída. Forças ocidentais e países de maioria islâmica trabalham juntas para apresentar a Teerã uma opção de desescalada sem retaliação pelo ataque ao seu território, oferecendo em troca um acordo de paz no enclave palestino.
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O plano começou a ser formulado durante a reunião da Organização para a Cooperação Islâmica (OCI), fórum internacional que reúne países de maioria muçulmana com sede em Jeddah, na Arábia Saudita, na quarta-feira — exatamente uma semana após a morte de Haniyeh. Embora uma declaração final do grupo tenha apontado Israel como “inteiramente responsável” pelo assassinato do líder do Hamas e o ataque como uma “grave violação” à soberania do Irã, o que abriria caminho para uma reação justificada, conversas sobre contenção ocorreram nos bastidores.
Em uma entrevista à rede americana CNN na quarta-feira, o ministro das Relações Exteriores da Jordânia, Ayman Safadi, deu o sinal mais claro até o momento de que a hipótese de uma não escalada — algo que seria impossível ou muito difícil em caso de retaliação — está sendo considerada pelos iranianos, e de que isso teria relação com o que se passa em solo palestino.
— O primeiro passo para interromper a escalada é acabar com sua causa raiz, que é a contínua agressão israelense a Gaza — disse Safadi, que viajou durante o fim de semana a Teerã como parte de um raro esforço diplomático envolvendo países árabes e o Ocidente para evitar uma escalada. — O único caminho a seguir é trazer um cessar-fogo imediato que ajudará a acalmar a situação regional e salvará a região do abismo de mais conflitos.
A ação entre os países de maioria muçulmana não ficou isolada. Em uma iniciativa bilateral, o presidente da França, Emmanuel Macron, falou por telefone com o recém-eleito presidente do Irã, Masoud Pezeshkian, na quarta-feira. De acordo com a Presidência francesa, Macron teria alertado o iraniano de que o país não deveria retaliar Israel, alegando que mais violência causaria danos a longo prazo às perspectivas de estabilidade regional.
A resposta de Pezeshkian pareceu guardar um aceno à possibilidade de não retaliar e apontou para Gaza.
“Se os EUA e os países ocidentais realmente querem evitar a guerra e a insegurança na região, eles devem convencer este regime [de Israel] a parar o genocídio e os ataques em Gaza e aceitar um cessar-fogo”, disse Pezeshkian, segundo uma declaração no site oficial do governo do Irã.
Na quinta, os principais mediadores das negociações de paz em Gaza, EUA, Catar e Egito, deram um ultimato para Israel e Hamas concluírem um acordo de cessar-fogo, que também permita o retorno dos mais de 100 reféns que ainda estão no enclave. Os israelenses concordaram em retomar as negociações nesta sexta-feira e confirmaram o envio de uma delegação para uma nova rodada de conversas. O movimento palestino não respondeu.
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Nesta sexta, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, também saiu a público para apelar por um cessar-fogo imediato em Gaza. “Precisamos de um cessar-fogo agora mesmo. Esta é a única forma de salvar vidas, restabelecer a esperança de paz e garantir o retorno dos reféns”, disse em uma publicação na rede social X.
A perspectiva de uma retaliação do Irã preocupou a região e a comunidade internacional sobre uma possível ampliação da guerra em Gaza, incluindo no conflito um país com capacidades militares importantes e um programa nuclear que é motivo de atenção internacional. Israel alertou que sua resposta tanto ao Irã quanto ao Hezbollah — que teve uma de suas lideranças mortas em um ataque reivindicado por Israel um dia antes da eliminação de Haniyeh — seria “desproporcional”.
Até o momento, os acenos à diplomacia e sinais de desescalada não mudaram a situação do terreno em Gaza. Milhares de palestinos se retiraram da cidade de Khan Younis nesta sexta-feira, diante de uma nova ordem de evacuação dada por Israel, que retomou operações terrestres em certas áreas da região. Um dia antes, as forças israelenses bombardearam duas escolas na Faixa de Gaza, matando ao menos 18 pessoas, de acordo com os serviços de emergência. Segundo Israel, as instalações abrigavam centros de comando do Hamas.
O último ataque foi amplamente condenado pelo Irã, que acusou o Estado judeu de pretender intencionalmente estender o conflito em Gaza ao resto do Oriente Médio.
“Este é claramente um ataque contra escolas e instalações civis seguras na Faixa de Gaza”, declarou o porta-voz Mohammad al Mughayyir, acrescentando que 60 pessoas ficaram feridas e outras 40 estão desaparecidas. O ministro interino das Relações Exteriores do Irã, Ali Bagheri, declarou à AFP que Israel cometeu um “erro estratégico” que lhe “custará caro” ao matar Ismail Haniyeh em Teerã na semana passada, poucas horas após o assassinato de Fuad Shukr.
Em paralelo, a Guarda Revolucionária do Irã anunciou ter incorporado mísseis de longo alcance e drones à sua Marinha. A TV estatal iraniana disse na sexta-feira que “um grande número de novos mísseis de cruzeiro antinavio” foram adicionados às forças navais por ordem do chefe da Guarda.
Os mísseis teriam “novas capacidades” com “ogivas altamente explosivas” e “indetectáveis”.
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— Se não pudermos nos envolver com o inimigo nas profundezas do mar e oceanos em qualquer ponto desejado e parar o inimigo de longe, naturalmente teremos problemas em nossas fronteiras nacionais — disse o general Hossein Salami, chefe das Guardas Revolucionárias. — No mundo de hoje, é preciso ser forte para sobreviver e estar seguro, ou se render. Não há meio termo.
A campanha militar de Israel em Gaza matou pelo menos 39.699 pessoas, de acordo com o Ministério da Saúde do território, controlado pelo Hamas, que não dá detalhes sobre mortes de civis e militantes. O ataque de 7 de outubro ao sul de Israel, lançado pelo grupo palestino, que deu início à guerra, resultou na morte de 1.2 mil pessoas, a maioria civis.
Alguns sinais indicam que a pressão neste momento pode alcançar resultado. Com os dois lados do conflito pressionados após 10 meses de guerra, uma atuação ocidental para pressionar Israel diante da possibilidade de uma ampliação do conflito poderia ser mais efetiva — em um momento em que a pressão interna também afeta o governo.
O ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, declarou nesta sexta-feira que seria importante “alcançar rapidamente” um acordo sobre a libertação dos reféns detidos em Gaza, durante uma conversa com seu homólogo americano Lloyd Austin.
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“Enquanto trabalhava pela segurança de Israel, o ministro Gallant enfatizou a importância de chegar rapidamente a um acordo que garanta o retorno dos reféns mantidos pelo Hamas em Gaza”, disse o Ministério da Defesa em um comunicado. Ambos teriam concordado com a “urgência” do assunto.
Pelo lado iraniano, especialistas já apontavam que Teerã teria poucas formas de reagir efetivamente à morte de Haniyeh.
— O Irã está preso entre a cruz e a espada — disse Dina Esfandiary, consultora sênior para o Oriente Médio e Norte da África no International Crisis Group, em entrevista à Bloomberg, antes das tratativas em Jeddah. — Ele vai querer retaliar de uma forma que seja significativa o suficiente para impedir Israel de aumentar a espiral de escalada. Mas não vai querer fazer algo para provocar uma guerra regional que arrastará os EUA para dentro.
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Uma opção seria mirar em instalações militares em Israel — semelhante ao bombardeio de foguetes e drones que realizou em abril. Isso causou danos mínimos, em parte porque o movimento foi previamente telegrafado, fazendo com que a força aérea israelense abatesse a grande maioria dos projéteis com a ajuda dos EUA, Reino Unido, França e Jordânia. Sob pressão dos EUA, Israel respondeu com um ataque limitado a uma base aérea iraniana, o que significou que as tensões logo diminuíram.
Outra opção é usar a rede de representantes armados do Irã, incluindo milícias no Iraque, o Hezbollah baseado no Líbano e os Houthis no Iêmen para atingir Israel com mísseis e drones. Essa opção, contudo, retiraria o caráter pessoal da retaliação, deixando Teerã, que encabeça o Eixo da Resistência, em uma posição em que dependeu dos aliados menores para ferir Israel.
— [Neste cenário, o objetivo seria] sobrecarregar as capacidades de defesa aérea de Israel e interromper a infraestrutura militar e, potencialmente, civil — disse Burcu Ozcelik, pesquisador sênior do Royal United Services Institute de Londres. — O ataque poderia ocorrer ao longo de uma série de dias. (Com Bloomberg e AFP)