Trabalhar em qualquer parte do mundo, com emprego estável e carteira assinada. Esse sonho profissional vem se tornando realidade em empresas que decidiram “radicalizar” o trabalho remoto e oferecer aos colaboradores a oportunidade de adotarem o chamado anywhere office, ou escritório em qualquer lugar.
- Pensando em morar no exterior? Veja ranking dos melhores países para expatriados morarem
- Quer morar fora? Esqueça Paris ou NY. Expatriados apontam as 10 melhores cidades para se viver, e a lista surpreende
O modelo tem ajudado a aumentar o engajamento, reduzir o estresse e reter talentos, dizem firmas que apostam nele. É o encaixe perfeito para os chamados nômades digitais, profissionais que buscam trabalhar remotamente de qualquer lugar do mundo. A categoria que não para de crescer abrange freelancers, prestadores de serviço, empreendedores on-line, influenciadores digitais e, cada vez mais, funcionários de empresas que permitem o trabalho remoto, segundo Wilma Dal Col, diretora de Gestão Estratégica de Pessoas no ManpowerGroup Brasil.
A preferência dos brasileiros pelo trabalho remoto é apontada pela pesquisa People at Work 2024, do ADP Research Institute, braço da multinacional de recursos humanos ADP. No estudo global, o Brasil teve a maior parcela de pessoas que gostam de trabalhar remotamente (75%) e que valorizam jornadas flexíveis (74%). O levantamento se baseou em entrevistas com mais de 34 mil trabalhadores em 18 países.
Veja fotos de apartamentos no Rio visados por nômades digitais
Veja fotos de apartamentos no Rio visados por nômades digitais
Uma das empresas brasileiras que adotam o anywhere office é a QuintoAndar, especializada em venda, locação e administração de imóveis. A cada 12 meses, os funcionários podem permanecer no exterior por até 90 dias. Mais de 120 já viajaram em períodos fora das férias. Na farmacêutica Libbs, desde 2022, 34 trabalhadores aderiram ao programa interno que concede adiantamento salarial para quem quer morar fora por até 18 meses, prazo que pode ser estendido e está sendo reavaliado.
A inovação não se restringe às empresas privadas. O funcionalismo público foi transformado nos tempos pós-pandêmicos, e o trabalho remoto de fora do Brasil passou a ser autorizado em 2022 para reduzir pedidos de licença não remunerada. Em março, segundo dados do Ministério de Gestão e Inovação no Serviço Público, havia 299 servidores federais trabalhando no exterior.
- Já mentiu no currículo? Conheça os ‘detetives’ de RH e veja como são checados dados de candidatos a emprego
Barbara Silveira, sócia do escritório Chalfin Goldberg Vainboim Advogados, alerta, no entanto, que empresas interessadas no anywhere office precisam estabelecer regras claras, como o tempo máximo de permanência fora.
Além disso, mesmo vivendo em outro país, essas pessoas normalmente seguem recebendo em reais e pagando Imposto de Renda no Brasil. Não costuma haver reajuste na remuneração de acordo com o câmbio, e fica a cargo do empregado converter o salário para a moeda local. E, dependendo do tempo fora, esses profissionais podem ter de arcar com impostos adicionais dos países onde estão vivendo. Em caso de demissão, há discussões sobre a responsabilidade dos custos do retorno para o exame demissional e devolução de equipamentos.
Ainda há o inconveniente do fuso horário, mas nada que os adeptos não superem. No ano passado, a analista de dados do QuintoAndar Luma Mesquita, de 31 anos, passou um mês no Japão, de onde seguiu para conhecer Tailândia, Indonésia e Cingapura. Antes de pegar o voo, combinou com a gestora uma adequação na jornada de trabalho. Na maioria dos dias, ela trabalhava entre 7h e 16h no horário do Brasil (ou entre 19h e 4h, no horário japonês).
— Eu me organizei para que minhas responsabilidades fossem cumpridas sem comprometer a experiência. Passei o mês imersa na cultura local, vivendo como residente enquanto trabalhava. Treinei muay thai na Tailândia e aprendi a surfar em Bali, na Indonésia — conta Luma, que aproveitava as manhãs para descansar e conhecer o país.
Na farmacêutica Libbs, o anywhere office permitiu que Ellen Ghiraldini, gerente de Novos Produtos, de 38 anos, se mudasse para Toronto, no Canadá, em maio do ano passado. Neste ano, foi a vez da analista de Marketing Thalita Pedralino, de 27 anos, ir para Copenhagen, na Dinamarca. Elas contam que, depois da mudança, puderam conhecer outros países gastando menos.
Ellen foi para o Canadá em fevereiro de 2022 pela primeira vez para estudar inglês, aproveitando que já trabalhava remotamente. Após três meses, retornou ao Brasil. Assim que chegou, a Libbs adotou o anywhere office de vez, e ela não pensou duas vezes.
— Foi a oportunidade de emigrar. Sigo o horário do Brasil, estando duas horas à frente, e ganho em reais, mas coloquei isso na balança antes de mudar — conta Ellen, que já conheceu Bankoc, Los Angeles e Nova York, para onde encontra vários voos promocionais saindo de Toronto.
Thalita está na empresa desde 2022 e disse que o teletrabalho a atraiu. No ano passado, o marido conseguiu um emprego na Dinamarca e ela pôde acompanhá-lo, conta:
— Foi a oportunidade de continuar trabalhando com o que gosto, sem ter que manter relacionamento à distância. Como estou cinco horas à frente, então começo a trabalhar às 13 horas.
Para Ellen, a possibilidade de trabalhar de qualquer lugar a faria pensar duas vezes antes de sair do QuintoAndar, mesmo para ganhar um salário maior. O mesmo diz Paula Pimentel, diretora de Marketing da startup sueca Neo4j, que trabalha remotamente desde 2009, quando o teletrabalho sequer era considerado pela maioria das empresas. Naquele ano, Paula morava no Cairo, no Egito, onde os engarrafamentos eram ainda piores que os de São Paulo, conta.
— Então surgiu o remoto, mas as pessoas eram apegadas ao presencial. As salas (de trabalho nas empresas) eram um símbolo de status — diz a profissional, que hoje trabalha de Embu das Artes (SP), mas está sempre viajando.
A maior vantagem do anywhere office, para Paula, é poder conhecer e viver em diferentes cidades e países. Ela já morou na América do Norte, Europa e África, e conheceu cerca de 50 países. No entanto, conciliar viagem e trabalho pode ser exaustivo, observa:
— Costumo chegar um dia antes para descansar. É zero glamour, mas é legal demais. Numa quinta qualquer, nos EUA, fui ver o Boston Celtics (time de basquete) depois do trabalho. Na Guatemala, era terça e eu estava trabalhando em Antigua, a primeira área urbana das Américas.
Como não há normas trabalhistas para o anywhere office, Gabriela Lima, sócia de Direito Trabalhista e Imigração do TozziniFreire Advogados, diz ser fundamental que as empresas criem suas regras. Há casos em que o empregado vai trabalhar fora, consegue outro emprego e se demite, mas não retorna para o exame demissional. Isso precisa estar nas regras. O mesmo vale para a devolução de equipamentos.
Ela lembra que alguns países não permitem o teletrabalho. Além disso, embora a empresa não precise arcar com plano de saúde no exterior, é recomendável exigir que o empregado tenha convênio ou seguro onde estiver morando.
— E se acontecer um acidente na hora do almoço, na rua? É complicado (juridicamente). Recomendo exigir que o funcionário pague plano de saúde e seguro-viagem, para eventuais problemas.
Antes de lançar o programa Work from Anywhere (Trabalhe de qualquer lugar) em fevereiro de 2023, o QuintoAndar listou uma série de documentos que devem ser assinados pelos interessados, com regras como limitação de dias no exterior e seguro obrigatório. Segundo Marina de Almeida, gerente sênior de Mobilidade Global da companhia, o programa ajuda a reter talentos, mas é preciso adequar algumas coisas.
— A ferramenta em que marcamos o ponto não entendia a diferença de fuso. Em alguns casos, as horas trabalhadas eram contabilizadas como extras. Agora a ferramenta considera onde o colaborador está — conta a executiva.
Henrique Holzhausen, diretor de Cultura e Processos na Libbs, diz que, diferentemente do trabalho remoto, a lógica do anywhere office é trabalhar de onde “fizer mais sentido”.
— É trabalhar de onde for melhor: em casa, viajando ou na empresa. Tivemos pessoas que foram morar fora, com fuso de quatro horas, e se adequaram. Outras decidiram sair da empresa para ficar em outro país.
A Libbs transfere um valor a cada três anos e meio para os funcionários gastarem com ferramentas de trabalho, como computador e monitor. Esses itens permanecem com o empregado, mesmo ao deixar a empresa. Nesse tema, a única exigência da lei brasileira é que o empregador pague o vale-transporte para funcionários que utilizem modais públicos no Brasil.
Outros benefícios, como vale-alimentação e plano de saúde, são determinados na convenção coletiva de cada empresa, explica Gabriela, e devem ser mantidos mesmo para funcionários que moram fora. No entanto, eles só podem usar esses benefícios quando estiverem no Brasil. Caso familiares também tenham direito ao plano, segundo a convenção da empresa, podem seguir usando normalmente.