O presidente russo, Vladimir Putin, e o líder norte-coreano, Kim Jong-un, assinaram nesta quarta-feira um novo acordo que inclui o compromisso de assistência mútua caso qualquer um dos dois países seja atacado, reavivando uma promessa de defesa mútua da época da Guerra Fria. Nem Pyongyang ou Moscou divulgaram detalhes de seu acordo para uma “parceria estratégica abrangente”, que abarca as esferas política, comercial, de investimento, cultural e de segurança, em provável sinal de que violam no todo ou em parte sanções internacionais impostas aos dois regimes.
Em declarações após a assinatura do documento durante um encontro bilateral, o presidente russo não esclareceu se tal assistência requereria uma intervenção militar imediata e em larga escala no caso de um ataque, como especificado pelo tratado de amizade e assistência mútua de 1961, que ficou extinto com a desintegração da União Soviética, em 1991. Mas ele disse que a Rússia “não exclui o desenvolvimento de cooperação técnico-militar” com a Coreia do Norte sob o novo acordo, visto como a conexão mais forte entre Moscou e Pyongyang desde então.
O pacto foi um dos prêmios mais visíveis que Kim extraiu de Moscou em retribuição pelo envio de dezenas de mísseis balísticos e mais de 11 mil contêineres navais com munições (o equivalente a 260 mil toneladas métricas de projéteis) que, segundo Washington e outros governos ocidentais, Pyongyang forneceu desde setembro para ajudar a Rússia em sua guerra na Ucrânia, travada desde 2022. Ambos negam as alegações, apesar de haver evidências significativas dessas transações, que Moscou paga com assistência econômica, envio de petróleo, e transferências de tecnologias para fortalecer o programa de armas nucleares e mísseis norte-coreano — minando os esforços de Washington para estrangular sua economia com as sanções.
— Este é realmente um documento revolucionário, refletindo o desejo dos dois países de não descansar sobre louros, mas ascender nossas relações para um novo nível qualitativo — acrescentou Putin, que desembarcou na Coreia do Norte nas primeiras horas da quarta-feira no horário local (terça-feira em Brasília), exatamente 24 anos após sua última passagem pelo país.
O pacto também representa o mais longe que Kremlin já foi em seu apoio à Coreia do Norte depois de anos de cooperação com os EUA e a ONU para coibir o programa nuclear e de mísseis norte-coreano — uma mudança que acelerou após a invasão da Ucrânia. Como também Moscou se distanciou dos esforços para conter o programa do Irã, o acordo representa uma nova ameaça a esforços globais de não proliferação de armas nucleares.
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Putin é recebido na Coreia do Norte para estreitar parceria ‘estratégica’
— Não acho que vá assinar qualquer acordo [pela não proliferação] novamente — disse Michael A. McFaul, um ex-embaixador na Rússia e diretor do Instituto de Estudos Internacionais Freeman Spogli da Universidade Stanford, refindo-se a Putin. — Acho que decidiu que somos o inimigo, que a ordem internacional ancorada nos EUA acabou, e ele quer ver sua destruição.
A opinião é compartilhada por Edward Howell, professor de política da Universidade de Oxford, para quem o relacionamento dos dois “não é apenas sobre necessidade”, já que estão formando “uma frente unida e alinhada cada vez mais coordenada contra os Estados Unidos e o Ocidente”, disse à rede americana CNN.
Prova disso é o momento da visita, que ocorre um mês após a reunião do presidente russo com o líder chinês, Xi Jinping, e depois que líderes do G7 (democracias mais industrializadas do mundo) se reuniram numa cúpula na Itália e novamente mostraram solidariedade à Ucrânia na guerra. Somado a isso, segundo análise publicada pela CNN, há a revolta da Coreia do Norte contra a crescente cooperação de segurança entre os EUA e Coreia do Sul e Japão.
Em suas declarações, Putin pontuou que os dois países têm “uma política externa independente e não aceitam a linguagem de chantagem por parte do Ocidente”, criticando os EUA por expandir infraestrutura militar na região e realizar manobras militares com a Seul e Tóquio. Ele rejeitou o que classificou de tentativas de colocar a culpa pela deterioração de segurança regional na Coreia do Norte, que realizou seis testes nucleares desde 2006 e testou mísseis intercontinentais balísticos que poderiam chegar aos EUA.
—Pyongyang tem o direito de adotar medidas razoáveis para fortalecer sua própria capacidade de defesa, garantir sua segurança nacional e proteger sua soberania — disse Putin.
Kim descreveu o pacto como o “acordo mais poderoso de todos os tempos”, elogiou a “excelente capacidade de visão” de Putin — “o amigo mais querido do povo coreano” — e prometeu apoio total à Rússia em seu esforço na Ucrânia, afirmou a agência de notícias estatal russa RIA Novosti.
— Não tenho dúvidas de que [a aliança entre Rússia e Coreia do Norte] se tornará uma força motriz que acelerará a criação de um novo mundo multipolar — afirmou o norte-coreano, afirmando que o pacto tinha uma natureza “pacífica e defensiva”.
Contra políticas ‘imperialistas’
Quando Moscou e Pyongyang assinaram um acordo de amizade em 2000, na primeira viagem de Putin à Coreia do Norte, o documento não continha uma cláusula de intervenção militar automática, estabelecendo apenas “contato” mútuo se houvesse uma emergência de segurança, sem estipular intervenção ou assistência militar. Assim, a promessa de agora de assistência mútua entre os dois países, tratados como párias por parte da comunidade internacional, deve alarmar ainda mais Washington e seus aliados, especialmente a Coreia do Sul pelo potencial de minar os esforços para conter os programas nuclear e de mísseis da Coreia do Norte.
Em março, um veto russo nas Nações Unidas encerrou o monitoramento das sanções contra o Pyongyang. Segundo analistas ouvidos pela Associated Press, a decisão provocou novas acusações ocidentais de que Moscou buscava evitar o escrutínio enquanto compra armas do país para uso na Ucrânia.
Putin é o primeiro chefe de Estado importante a visitar a Coreia do Norte desde a pandemia, destacando sua importância para a Rússia . Ele foi recebido com uma cerimônia cheia de pompa na capital norte-coreana, com guardas de honra, militares e crianças segurando balões coloridos aplaudindo o russo, que andou ao lado do norte-coreano em um tapete vermelho. Edifícios da cidade foram decorados com flores, bandeiras da Rússia e retratos do presidente.
Os dois líderes andaram no mesmo carro — uma limusine russa Aurus que Putin deu a Kim há nove meses, quando Putin recebeu Kim no extremo oriente russo — em direção à casa de visitas do Estado. Quando as conversas começaram, Kim apresentou a Putin a ministra das Relações Exteriores, Choe Son-hui; o principal assessor e secretário do partido no poder, Jo Yong-won; e sua irmã, Kim Yo-jong.
Putin agradeceu a Kim pelo apoio norte-coreano na guerra na Ucrânia, algo que ele classificou como uma “luta contra as políticas imperialistas e hegemônicas dos Estados Unidos contra a Federação Russa”. De acordo com a Associated Press, ele ainda exaltou os laços que remontam ao Exército soviético lutando contra o Exército japonês nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial, além do apoio de Moscou a Pyongyang durante a Guerra da Coreia.
Kim afirmou que a “amizade” entre os países agora está ainda mais próxima do que durante os tempos soviéticos, e prometeu “total apoio e solidariedade ao governo, ao Exército e ao povo russo” para “proteger a soberania, os interesses de segurança e a integridade territorial” durante a ofensiva contra Kiev. Putin também convidou Kim para visitar a Rússia mais uma vez, como fez no ano passado.
Após o encontro desta quarta, os líderes russo e norte-coreano trocaram presentes, de acordo com a mídia estatal da Rússia. Putin teria dado a Kim um carro Aurus Senat pela segunda vez, além de um conjunto de chá. Yuri Ushakov, assessor do presidente russo, não especificou o que Putin recebeu, mas disse que também eram “bons presentes”.
Em Washington, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, disse que a visita de Putin à Coreia do Norte ilustra como a Rússia tenta, “em desespero, desenvolver e fortalecer relações com países que podem fornecer o que ela precisa para continuar sua guerra de agressão”.
Embora as armas fornecidas pela Coreia do Norte à Rússia possam ser de qualidade inferior, elas ajudaram Moscou a reabastecer seus estoques em declínio e acompanhar o suporte que a Ucrânia tem recebido do Ocidente. Outro benefício apontado por observadores é que o arranjo entre as duas nações pode permitir que a Coreia do Norte obtenha informações reais sobre o funcionamento de suas armas e aumente as exportações de forma mais ampla.
O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, instou a comunidade internacional a combater a “amizade” entre Putin e Kim, aumentando os envios de armas para Kiev. À AFP, ele afirmou que “a melhor forma de responder é continuar a fortalecer a coligação diplomática para uma paz justa e duradoura na Ucrânia”. (Com AFP e New York Times)