Em totens espalhados pelo principal centro de conferências de Riad, capital da Arábia Saudita, um robô treinado com 500 bilhões de unidades linguísticas em árabe explica por que a inteligência artificial é uma aposta estratégica para o reino do Golfo Pérsico: “O investimento em IA pode ajudar a diversificar a economia, criando indústrias, gerando empregos e promovendo oportunidades de inovação”, diz Allam, chatbot de IA lançado no ano passado pelo país.
Depois da resposta, o cientista de computação que exibe o sistema comenta que ele é capaz de entender nuances do idioma e cultura árabe que as versões ocidentais, como o ChatGPT, não conseguem alcançar.
O desenvolvimento do LLM (modelo de linguagem, que são os “cérebros” por trás das IAs) levou cerca de um ano. O projeto foi liderado pela Autoridade Saudita para Dados e Inteligência Artificial (SDAIA), uma espécie de ministério só para este tema.
A criação da SDAIA, há cinco anos, faz parte dos planos do país para se tornar um dos líderes globais na tecnologia. O esforço integra um amplo plano saudita, o Visão 2030, de transição para uma economia pós-petróleo.
O objetivo é que o maior exportador da commodity no mundo reduza a dependência do combustível fóssil, hoje responsável por 87% do orçamento do país e de 42% do PIB. A previsão do governo é que a IA contribua com 12% do PIB até 2030 e que o mercado cresça 29% por ano. O setor movimentou US$ 9,2 bilhões em 2023, segundo a PwC.
Em paralelo, a Arábia Saudita adota agenda de reformas para flexibilizar as rígidas leis locais baseadas na sharia, normas islâmicas que norteiam o sistema de justiça. O país quer se mostrar mais atraente ao exterior, seguindo o caminho dos Emirados Árabes Unidos.
O reino absolutista, liderado pelo príncipe Mohammed bin Salman, tem se empenhado em exibir seus avanços em inteligência artificial ao mundo. A conferência de 2024, que aconteceu este mês, reuniu mais de 400 palestrantes de cem países, além de grandes empresas de tecnologia, como Microsoft, Google, Siemens, Dell e Nvidia.
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Nos corredores do evento, era minoria o público com trajes ocidentais. Mulheres em geral vestiam abayas (vestes largas e compridas, geralmente pretas) e homens, thobes (longas túnicas brancas). Para ter acesso à rede Wi-Fi, era preciso ter um número saudita. Samosa e tâmara com pistache entravam no cardápio servido à vontade para o público.
Duas salas eram designadas para os momentos de orações. Nas dezenas de mesas do Gain Summit, realizado em um país que criminaliza a homossexualidade e que ainda hoje pratica execuções coletivas, discutiram-se temas como a diversidade na indústria de IA.
Em três dias de conferência, 70 memorandos foram firmados pelo reino, entre eles, uma colaboração com a OCDE, grupo que reúne os países mais ricos do mundo, para monitorar os riscos associados à IA no Oriente Médio.
Projetar-se como uma potência em IA inclui o empenho em demonstrar a agenda de reformas do reino, incluindo de maior equidade de gênero, apesar do histórico de repressão a mulheres. Até 2018, elas eram proibidas de dirigir. Até cinco anos atrás, só poderiam viajar se estivessem acompanhadas ou contassem com a permissão de um “tutor” (como pai ou marido). Ainda hoje, a maioria das universidades segrega aulas de homens e mulheres.
O presidente da SDAIA, Abdullah bin Sharaf Alghamdi, disse com orgulho, na abertura da conferência, que o país tem a meta de alcançar a equidade de gênero na força de trabalho em IA e que tem trabalhado em um programa para formação de mulheres em 28 países:
— Essa jornada não é sobre marcos tecnológicos ou uma corrida para desenvolver a IA mais inteligente, mas sim sobre construir uma parceria entre humanos e máquinas para resolver os maiores desafios da humanidade.
Álcool proibido e pena de morte
No reino que permitiu a escravidão até 1962, onde o álcool é proibido e em que ainda são aplicadas punições severas para determinados crimes, como a pena de morte por decapitação, a tentativa de ser uma nação na vanguarda da IA passa pelos projetos de megacidades futuristas que vêm sendo construídas do zero. O principal programa é o Neom, que envolve a construção de quatro cidades inteligentes planejadas para serem sustentáveis e 100% conectadas.
— A IA é aplicada em diferentes setores. Em energia, para melhor desempenho de fontes renováveis. Na agricultura, para desenhar melhores sistemas de irrigação e produção — conta ao GLOBO Alnemari Mohammed, professor de engenharia da computação na Universidade de Tabuk, que colabora com pesquisas para Neom.
As soluções de IA vem pouco a pouco entrando nas indústrias do país, como de saúde e energia, e no setor público, do judiciário aos sistemas de segurança. No sistema de justiça, o país conta com um programa de IA que reúne informações sobre jurisprudência para auxiliar juízes e funcionários do sistema judiciário.
Na saúde, uma das iniciativas do governo é o Eyenai, sistema para detectar potenciais problemas a partir de exames do olho humano. Em organizações internacionais de direitos humanos, o avanço acende alerta para o risco da IA ampliar a capacidade de vigilância do governo saudita.
Em Meca, cidade sagrada do Islã, o governo criou um sistema de monitoramento de multidões, a partir de IA, que identifica fluxo de pessoas e ajuda a organizar rotas de segurança. O programa foi exibido no Gain com telas que mostravam participantes sendo “mapeados” em tempo real.
Maior empresa de petróleo do mundo, a estatal Saudi Aramco apresentou avanços no que diz se o “maior LLM industrial” do mundo, o MetaBrain, alimentado com dados de 90 anos de operações.
— Os modelos de IA da Aramco já estão analisando plantas de perfuração e dados geológicos para recomendar as melhores informações para nossos engenheiros — disse Ahmad Al-Khowaiter, vice-presidente de Tecnologia e Inovação da empresa. — Em breve, nós vamos emitir previsões para a tendência de preços e dinâmica de mercado ao redor do mundo.
Os planos da Arábia Saudita também incluem o incentivo a startups. Em quatro anos,o número de startups sauditas de IA saltou de 177 para 242, em 2023. O New York Times revelou que o reino destinou US$ 40 bilhões para criar o maior fundo de capital de risco do mundo voltado exclusivamente à inteligência artificial.
Quem acompanha o ambiente de negócios no país há mais tempo percebe o movimento do reino para se tornar mais global. Ex-comissário comercial do governo sueco na Arábia Saudita, Marcus Petersson diz que há um encorajamento maior do governo para atrair empresas e investimentos estrangeiros.
— Os Emirados Árabes Unidos caminharam mais rapidamente nessa direção. Nos últimos anos, a Arábia Saudita percebeu que precisava fazer o mesmo — diz o sueco, que hoje é representante no Oriente Médio da Furhat Robotics, uma startup de robôs de IA.
*A repórter viajou a convite da Autoridade Saudita para Dados e Inteligência Artificial