Em seu primeiro discurso como presidente do México, Claudia Sheinbaum, primeira mulher em ser eleita para governar o país, escolheu dois focos principais: a defesa do governo de seu antecessor, Andrés Manuel López Obrador, e do feminismo. As dúvidas sobre até que ponto Sheinbaum se descolará do agora ex-presidente, a quem se referiu como “o melhor presidente da História do México”, continuam, mas alguns gestos da ex-prefeita da capital mexicana na cerimônia de posse mostraram que ela buscará ter uma agenda própria. O feminismo é, sem dúvida, seu maior capital político.
— É tempo de transformação, é tempo de mulheres. Durante muito tempo, as mulheres fomos anuladas, nos contaram desde que éramos crianças uma versão da história que buscou nos fazer acreditar que os avanços da humanidade eram protagonizados por homens. Mas, pouco a pouco, essa visão se reverteu — disse a nova presidente mexicana, que aproveitou para defender a utilização do termo “presidenta”: — É presidenta, com a no final, como advogada, científica, soldada, bombeira, professora, engenheira. Porque, como nos ensinaram, apenas o que é dito existe.
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Aos 62 anos, Sheinbaum frisou a importância de que os mexicanos tenham eleito uma mulher como chefe de Estado.
— Sou mãe, avó, cientista, mulher de fé e, a partir de hoje, presidenta por vontade do povo. Hoje sabemos que as mulheres podemos participar das grandes proezas da História, e sabemos que podemos ser presidentas — enfatizou a sucessora de López Obrador, que dedicou quase dez minutos, de um discurso que durou 44, para elogiar o governo de seu antecessor.
Em meio a críticas da oposição por escândalos de corrupção, alguns deles envolvendo filhos do ex-presidente, o perfil considerado por alguns autoritário de López Obrador, e o excessivo poder dado às Forças Armadas (que passaram a controlar mais de 20 empresas estatais no país), Sheinbaum afirmou que seu antecessor “é um dos lutares sociais mais importantes da História moderna”.
A nova presidente se referiu a López Obrador como um “irmão, amigo e companheiro”, e disse que foi “uma honra lutar com o senhor”. Numa frase que, para alguns analistas foi interpretada como uma marcação de território, Sheinbaum disse duas vezes que agora chegou “o tempo das mulheres”. Mas, em momento algum, a nova presidente fez qualquer questionamento ao governo que terminou, pelo contrário.
— Nos últimos seis anos 9,5 milhões de mexicanos saíram da pobreza, não foram aumentados impostos, reduzimos as desigualdades, o endividamento encolheu, o desemprego diminuiu e temos recorde de investimento estrangeiro — assegurou a nova presidente, que defendeu o que definiu como “um novo modelo de país, o que chamamos de humanismo mexicano”.
Para opositores do ex-presidente, este novo modelo foi eficiente em tirar mexicanos da pobreza, mas não em promover o crescimento de uma classe média sólida. Segundo dados oficiais, no segundo trimestre deste ano 54% dos trabalhadores mexicanos não tinham carteira assinada.
Alguns princípios desse modelo, explicou Sheinbaum, são a austeridade republicana, o compartilhamento da prosperidade, o cuidado do meio ambiente — tema que nunca foi considerado prioritário por López Obrador —, e os direitos das mulheres — também pouco atendido pelo ex-presidente.
— Somos contrários ao racismo, machismo, classismo e qualquer tipo de discriminação — frisou a nova presidente, que se comprometeu a garantir a segurança jurídica no país e convocou os empresários para discutir várias medidas, entre elas o congelamento de preços dos produtos da cesta básica.
As críticas a López Obrador são muitas, e o México hoje, segundo alguns rankings internacionais, entre eles o elaborado pela revista The Economist, não é mais considerado uma democracia e sim um regime híbrido. Em 2021, a revista rebaixou a categoria democrática do país argumentando que López Obrador era um presidente que concentrava poder demais e condicionava outros poderes do Estado, entre eles o Judiciário.
A recentemente aprovada reforma do Judiciário, que implicará a eleição popular de juízes em todo o país, foi vista por setores da oposição como mais um passo na direção da concentração de poder. Mas em seu discurso de posse Sheinbaum rebateu as críticas e disse que o partido ao qual acaba de renunciar, mas continua fortemente vinculada, o Morena (Movimento de Regeneração Nacional), é “democrático”, e que a reforma trará mais democracia ao México.
A nova presidente tampouco questionou o forte vínculo entre López Obrador e os militares, que ampliaram expressivamente seu poder nos últimos seis anos. O ex-presidente entregou às Forças Armadas o controle de várias empresas estatais, e, em meio a políticas de ajuste que impactaram em ministérios e organismos estatais, preservou o orçamento militar.
A mudança de governo no México ainda é apenas uma mudança de nomes. Sheinbaum se destacou por seu discurso feminista, mas a presença de López Obrador ainda é forte e muitos duvidam no país sobre sua real disposição a dar liberdade plena a sua sucessora.