Desânimo, desesperança e cansaço. O impacto da eleição que deu vitória a Nicolás Maduro também repercute na saúde mental dos venezuelanos após anos de crises sucessivas. Enquanto pelas ruas da capital, Caracas, alguns comemoram o resultado contestado por parte da comunidade internacional, em geral o sentimento é de resignação.
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O próprio Edmundo González Urrutia , ex-candidato opositor, reconheceu a situação. Em carta lida por sua filha, poucos dias após se exilar na Espanha, pediu aos compatriotas “que não desanimassem!”. O clima no país, no entanto, continua tenso. Sob forte repressão após os protestos que tomaram conta do país e deixaram pelo menos 27 mortos, a população recorre cada vez mais a terapias e remédios como ansiolíticos.
Uma pesquisa divulgada antes da eleição pela Universidade Católica Andrés Bello (UCAB) mostrou que nove de cada 10 entrevistados apresentavam algum grau de vulnerabilidade. Segundo a análise, realizada com 1.200 pessoas em todo o país, 20% dos entrevistados sofriam níveis moderados ou altos de ansiedade e depressão; 89% afirmavam desconfiar do outro e 37% diziam ter medo coletivo. Apenas em agosto deste ano, mais de 1.200 pessoas foram atendidas pelos 12 médicos do serviço de psicologia do centenário Hospital Vargas de Caracas, a capacidade máxima do local.
— Na semana após o 28 de julho [dia da eleição], havia uma letargia social. O primeiro pensamento de muitos foi ir embora do país. É uma tentativa de fuga diante de uma situação de incapacidade, desesperança e impotência. As pessoas estão muito ansiosas, o que causa problemas como não dormir, pressão alta, enxaqueca, dores gástricas. Por trás de tudo isso está a ansiedade — explica Gilberto Aldana, chefe de psicologia do Hospital Vargas.
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Aldana cita o turbilhão de sentimentos entre os venezuelanos após o Conselho Nacional Eleitoral anunciar Maduro como vencedor da disputa presidencial, sem publicar as atas eleitorais. O impacto inicial da notícia desatou uma onda de panelaços e violentos protestos em toda a Venezuela. Mas as manifestações duraram pouco: foram abafadas pela violenta repressão que tomou conta do país. Dias depois, o presidente anunciava em rede nacional que 2.200 pessoas haviam sido presas por protestarem.
O Observatório Venezuelano de Conflito Social (OVCS) informou, recentemente, que foram registrados 2.383 protestos no primeiro semestre de 2024 — uma média de 13 manifestações por dia.
— No consultório atendo pacientes do oficialismo e da oposição. A palavra mais usada por eles é resiliência. Há incerteza nos dois grupos, da mesma forma que há uma calma tensa no país. O que mais vejo são casos de ansiedade e depressão. Não sabemos o que vai acontecer, estamos entre dois cenários possíveis — relata a psiquiatra Maria Luisa de Aldana, chefe do setor de psiquiatria do Hospital Vargas.
Embora não existam estatísticas oficiais, a população venezuelana vem recorrendo cada vez mais ao uso de remédios controlados e ao consumo de álcool, dizem especialistas. De acordo com a psiquiatra, o aumento do uso de ansiolíticos é visível.
— Tenho pacientes que agendam uma consulta apenas para solicitar receita para comprar remédios controlados. E esta não é a saída — afirma Maria Luisa de Aldana.
Com olhar fixo e voz embargada, uma ex-funcionária estatal contou ao GLOBO sentir “raiva, fúria e desesperança”. A mulher de 65 anos trabalhou por anos na estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA) até ser demitida em rede nacional pelo então presidente Hugo Chávez.
— Tinha esperança de viver minha velhice com outro governo, com mais qualidade de vida, mas pelo jeito terei que conviver com o que temos — diz ela, explicando que sobrevive graças ao apoio financeiro de familiares que estão fora do país.
As declarações de desânimo se repetem entre os entrevistados. Apressado após sair do trabalho, um homem de 44 anos diz que “não resta outra coisa além de trabalhar e seguir em frente”. Para ele, a saída de González do país foi “outro banho de água fria”, mas reconhece que o opositor corria perigo se continuasse na Venezuela.
— Não gostei do resultado, mas não tenho alternativa.
O medo agrava ainda mais esse quadro. Após a prisão de centenas de opositores ao governo, quem ficou no país evita fazer críticas políticas nas redes sociais, enquanto forças de segurança continuam revistando celulares nas ruas.
Outro entrevistado, que preferiu não se identificar, conta que desde a eleição sua rotina mudou.
— Fico apagando mensagens que podem ser consideradas subversivas ou críticas ao governo. Receio que algum policial ou militar pegue meu telefone, veja algo considerado comprometedor e eu acabe na prisão. Implicitamente todos acabamos controlando o que postamos para evitar problemas com o governo. Isso é estressante.
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O bloqueio imposto por dez dias por Maduro à rede social X foi mantido e até hoje a rede social está fora do ar no país. As poucas estações de rádios independentes evitam temas polêmicos. Nas programações predominam músicas, programas de esporte, de entretenimento e de orientações psicológicas para superar tantas crises.
— Desde a eleição, aumentou a procura por apoio emocional. Não só nos centros de saúde. Tenho ido a muitos meios de comunicação dar entrevistas sobre o tema e explicar como administrar situações de estresse e angústia — explica a psiquiatra.
Os especialistas afirmam que, após as eleições, a quantidade de ofertas de atendimentos gratuitos, pessoais ou por centrais telefônicas aumentou consideravelmente.
— Atendo pessoas de idades variadas. Mas percebi nos últimos dias o aumento no número de homens buscando apoio emocional. A maioria das reclamações desse grupo tem a ver com a questão financeira, que acaba afetando as relações familiares, a saúde e o bem-estar como um todo — conta a psicóloga Nilsa Rodríguez de Barrios.
Na semana passada, o GLOBO visitou uma sessão conjunta de um curso de Manejo das Emoções, ministrado pela doutora em psicologia Yulimar Carmona.
— Neste país, todos temos família fora. Então, havia muita gente com a esperança de voltar. Agora, meu filho está com planos de ir embora outra vez. Ele se sente frustrado porque é formado e não consegue estabilidade econômica — contou ao GLOBO uma das participantes, bastante fragilizada.
O psicólogo Rodolfo Romero explica que “há um mal-estar latente”, que deve, em médio prazo, se transformar em uma crise de saúde mental.
— São muitos problemas arrastados por anos. Situações que não estão sendo atendidas e vão deixar sequelas, independentemente de quanto tempo dure o conflito político. — afirma. — María Corina Machado [líder da oposição] conseguiu se conectar com as pessoas pelo lado emocional. Antes da eleição, havia medo, mas também a sensação de liberdade. Agora, o povo que votou na oposição precisa superar mais esta desilusão.
A crise política, no entanto, não é o único fator que aflige os venezuelanos. No fim de agosto, pelo menos 20 dos 23 estados do país sofreram um apagão. A capital ficou cerca de 15 horas sem eletricidade. Os cortes e flutuações de energia são constantes.
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A situação econômica é outro agravante. A inflação bateu 193%, em 2023, e o salário mínimo continua o equivalente a US$ 3,50 (cerca de R$ 19). Ao menos 90% da população não conseguem cobrir os custos da cesta básica.
— Estou feliz com o resultado da eleição, mas algo urgente a ser resolvido pelo presidente é a questão dos salários. Mesmo com os bônus, não consigo fechar as contas do mês, e isso me angustia muito — conta a funcionária pública María Pérez Gallindo, que complementa o salário mínimo com cerca de US$ 90 (R$ 488) que recebe em benefícios do governo.