Após quase uma semana, o ex-presidente da Bolívia Evo Morales (2006-2019) e milhares de apoiadores chegaram por volta do meio-dia (horário local) desta segunda-feira a La Paz, em uma marcha contra o presidente Luis Arce, antigo aliado e atual desafeto, em razão da crise econômica e de uma suposta tentativa de torpedear sua candidatura nas eleições de 2025. Confrontos diretos entre apoiadores de Morales e Arce deixaram pelo menos 34 pessoas feridas, de acordo com números oficiais. Morales exigiu que Arce faça mudanças no seu gabinete dentro de 24 horas “se quiser continuar a governar”, citando ministros “corruptos” e afirmou que “as mobilizações continuarão” se for preciso.
— E esta marcha serve para que? Para dizer (…) Chega de traição e sobretudo chega de corrupção, de proteção ao narcotráfico e chega de má gestão! — gritou Morales diante de milhares de apoiadores que se reuniam na entrada de La Paz. — E se Lucho quiser continuar governando, primeiro, que em 24 horas troque os ministros traficantes, os ministros corruptos, os ministros drogados, que troque os ministros racistas.
A “Marcha para salvar a Bolívia”, como chamou a ala pró-Morales dentro do Movimento ao Socialismo (MAS), começou na pequena cidade de Caracollo e sua última parada ocorreu em El Alto, em Ventilla. No domingo, em uma mensagem televisionada, Arce advertiu Morales de que não lhe daria o “prazer de uma guerra civil”. Naquele mesmo dia, pelo menos oito pessoas ficaram feridas, segundo a ministra da Saúde, María Renée Castro, após um confronto entre apoiadores de Morales e Arce (os últimos davam conta de 26 feridos). A tropa de choque da polícia entrou em ação para dispersar os dois grupos com gás lacrimogêneo.
O governo e Morales se acusaram mutuamente de criar um clima de violência enquanto a marcha do ex-presidente se dirigia a La Paz. Segundo o ministro do Governo, Eduardo Del Castillo, citado pelo jornal boliviano El Diario, a Câmara Municipal foi atacada por “setores agressivos”. Os apoiadores de Morales foram apontados pelo secretário-geral da Confederação Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia, Mario Seña, e a ministra como o pivô da violência, atacando pessoas ao redor com pedras, paus e elementos explosivos. De acordo com Castro, também ocorreram ataques contra ambulâncias e trabalhadores da saúde que transportavam pacientes nesses veículos.
Já o ex-presidente denunciou que o governo está tentando impedir a marcha pela força e que “se houver feridos ou mortos, a responsabilidade é do governo”. Ele revelou também que foi avisado de que tentariam matá-lo e que, por isso, alguns policiais e militares, que ele não identificou, “ficaram preocupados e lhe enviaram coletes à prova de balas”.
O ponto final dos manifestantes é a Praça Murillo, onde está a sede presidencial e palco de uma tentativa de golpe de Estado fracassada em junho. Antes mesmo da chegada da marcha à cidade vizinha de El Alto, a polícia já bloqueou o acesso à sede do governo, enquanto os dezenas de partidários do presidente Arce se reuniram nesta segunda-feira para aguardar a eventual entrada de Morales e seus apoiadores. A Prefeitura de La Paz também tomou os cuidados necessários para atender feridos, casos novos confrontos sejam registrados, informou o jornal La Razón.
— Viemos defender a democracia para que nosso irmão presidente possa cumprir seu mandato. Não queremos que ele seja prejudicado. O grupo do irmão Evo Morales está vindo para nos prejudicar — disse à AFP Lourdes Calizaya, líder do Conselho de Federações Camponesas de Yungas.
A mobilização contra o governo, que, segundo Morales, reunirá cerca de 15 mil pessoas, deve se reunir na capital boliviana à tarde, no final de um percurso de cerca de 190 km pelo altiplano boliviano. “Nossa marcha é para dizer basta à corrupção, a um governo de famílias, ao acobertamento do narcotráfico, à destruição da economia popular e ao ataque às nossas organizações sociais”, escreveu o ex-presidente em suas redes sociais nesta segunda.
Durante a marcha, a Defensoria Pública tentou, sem sucesso, mediar um diálogo entre os dois líderes. Algumas instituições bolivianas, em comunicado conjunto, também apelaram ao diálogo entre governo e apoiadores de Morales.
Crise e disputa política
A Bolívia, um país rico em recursos de gás e lítio, o principal mineral na transição para a energia limpa, vem enfrentando escassez de combustível e de dólares desde o ano passado. Diante da queda nas vendas de gás no exterior, associada ao declínio da produção devido à falta de investimentos no setor, o país reduziu as importações do combustível, que é distribuído a um preço subsidiado. Arce recorreu às reservas internacionais para manter os subsídios, o que, por sua vez, levou à falta de dólares e à desvalorização do peso boliviano.
Mas no centro da crise está a luta pelo poder entre Morales e Arce. O influente líder indígena acusou seu ex-ministro da Economia, ao longo dos 13 anos em que esteve no poder, de se aliar a juízes para impedi-lo de concorrer novamente à presidência em 2025 — a ala pró-governo do MAS apoia a reeleição de Arce, que até agora não disse se concorrerá às eleições.
“Essa mobilização não visa a demandas sociais; seu objetivo principal é interromper o atual mandato constitucional”, disse a ministra das Relações Exteriores, Celinda Sosa, em cartas públicas enviadas à ONU, ao Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, e ao secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). De acordo com a chanceler, Morales está tentando tornar sua candidatura à presidência “viável”, “apesar da Constituição Política do Estado não permitir”.
O porta-voz do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) boliviano, Tahuichi Tahuichi Quispe, afirmou nesta segunda-feira que o órgão eleitoral não cederá à pressão e que manterá sua “postura firme” para cumprir com a lei e a Constituição, informou o jornal boliviano Los Tiempos. O TSE deixou claro que não validará o congresso do MAS em 2023, cuja recusa de Arce em participar culminou na sua saída do partido, e nem a liderança de Morales no partido.
No último dia 16, Arce chegou a acusar o ex-aliado e padrinho político de tentar um golpe de Estado através das marchas e bloqueios convocados. Segundo o presidente, Morales ameaçou “com greves e bloqueios, porque quer fazer o que a Constituição do Estado não lhe permite fazer: se requalificar como candidato.”
Em dezembro, o Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) fixou em dois mandatos, contínuos ou não, o tempo máximo em que o presidente e o vice-presidente poderão permanecer no cargo. Morales já cumpriu três: entre 2006 e 2009, 2009 e 2014, e 2014 e 2019. Morales argumenta que pode se candidatar novamente, já que passou um mandato presidencial depois de deixar o poder. Com o apoio da ala de seu partido, ele tenta reverter a proibição por meio da pressão popular.