Em março, uma foto de vários detentos seminus numa das maiores prisões da cidade argentina de Rosario, localizada na província de Santa Fe, a 300 quilômetros de Buenos Aires, causou comoção e lembrou imagens que chegam de El Salvador. Nos últimos meses, a cidade foi transformada pelo governo argentino, em parceria com autoridades regionais, numa espécie de laboratório onde são implementadas políticas de combate à violência inspiradas no modelo do presidente salvadorenho, Nayib Bukele, que visitará a Argentina este mês. Representantes de ONGs locais e funcionários que atuam no Serviço Público de Defesa Penal afirmaram ao GLOBO que as práticas violam, em muitos casos, os direitos humanos.
O temor dos especialistas é que os primeiros resultados positivos na cidade, não necessariamente vinculados ao endurecimento das normas dentro das prisões e nas ruas, sejam usados pela Casa Rosada para impulsionar um modelo nacional similar ao salvadorenho — também alvo de questionamentos por parte de ONGs de defesa dos direitos humanos internacionais.
Nos últimos meses, a Assembleia Legislativa de Santa Fe modificou leis vinculadas a procedimentos penais que, segundo representantes de ONGS locais, violam a Constituição Nacional. As novas normas locais passaram a permitir, por exemplo, drásticas medidas de isolamento nas prisões, além do uso de “armas letais”, se necessário. Com as novas normas locais, a polícia pode prender um suposto suspeito de ter cometido um crime apenas por ele não ter em mãos seu documento de identidade, ou se negar a apresentá-lo. Em agosto, a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, comemorou em suas redes sociais o fato de que naquele mês não houve um homicídio sequer em Rosario, e anunciou um investimento de US$ 400 milhões (R$ 2,25 bilhões) em prisões e delegacias em todo o país.
— Quando assumimos o governo, Rosario estava em chamas, com 400 assassinatos por ano — disse Bullrich, que este ano visitou El Salvador, onde foi recebida por Bukele e conheceu uma das maiores prisões do país.
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O governo de Javier Milei — que esteve na última posse de Bukele, em junho deste ano — já expressou publicamente seu desejo de aprender com o modelo salvadorenho. Bukele, por sua vez, disse, em visita após a posse de Milei, estar “pronto para ajudar a Argentina”. O anúncio de uma nova visita do salvadorenho a Buenos Aires foi criticado por meios de comunicação argentinos. O jornal Ámbito Financiero, por exemplo, lembrou que “a extensão do estado de exceção em El Salvador é criticada internacionalmente”.
Mas, se Bullrich e autoridades locais comemoram os bons resultados, não explicam como eles estão relacionados ao endurecimento de normas para circular nas ruas e ao funcionamento interno das prisões de Santa Fe. A violência, de fato, diminuiu, explica Manuel Trufó, diretor de Justiça e Segurança do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), mas “não está claro como ela foi reduzida”.
— Há suspeitas de pactos entre as autoridades e grupos criminosos, e a dificuldade de ter acesso a informações sobre o que está acontecendo dentro das prisões aumenta essas suspeitas. Enquanto isso, o governo local, com o aval do governo nacional, endurece as políticas de segurança e implanta uma clara redução de garantias para detentos e falta de controle sobre o que fazem as forças policiais — afirma Trufó.
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Alguns dos presos fotografados em março denunciaram torturas, e foi aberta uma investigação. Mas, de acordo com Martin Riccardi, coordenador regional do Serviço Público de Defesa Penal, que comanda uma equipe de cerca de 40 defensores em toda a cidade de Rosario, o caso está “praticamente parado, apesar de denúncias muito graves”. ONGs locais solicitaram informações sobre os processos e, em todos os casos, os pedidos foram negados.
— Temos o registro de mais de 100 pessoas que sofreram lesões dentro da prisão no dia em que foi tirada a foto dos detentos. O episódio aconteceu depois do ataque a um ônibus que transportava funcionários do serviço penitenciário — conta Riccardi.
Segundo ele, “a investigação sobre o que aconteceu aquele dia não avança”.
— Os direitos dos detentos foram gravemente afetados, com o argumento de que isso é necessário para conter os crimes nas ruas. Mas isso é impossível de medir, são políticas mais demagogas do que eficientes — argumenta Riccardi, lembrando que “negar o contato com familiares ou o recebimento de comida viola direitos humanos”. — Fazemos pedidos de habeas corpus por estas restrições, e todos têm sido negados.
Com base nas novas normas na província, o governo de Santa Fe separou os presos entre os de “alto perfil”, os mais perigosos, e o restante. Os de “alto perfil” podem ser obrigados a usar coletes laranja, e, na maioria dos casos, ficam totalmente isolados, seguindo o modelo aplicado em El Salvador.
O principal questionamento dos especialistas consultados pelo GLOBO é a falta de transparência sobre o que está acontecendo dentro das prisões de Santa Fe, além da impossibilidade de ter acesso a processos que envolvem denúncias de violações dos direitos humanos e em relação às restrições à liberdade de circulação das pessoas.
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Em um pedido de habeas corpus coletivo apresentado na semana passada pela equipe de defensores comandada por Riccardi, foi denunciada a detenção de 876 pessoas que estavam na rua entre a segunda quinzena de julho e a primeira semana de agosto. Deste total, informaram os defensores, a polícia nunca explicou o motivo pelo qual foram detidas 385 pessoas — 86 eram moradores de rua.
No texto, os defensores públicos denunciam que a prisão viola a Lei 27.654, que busca “garantir integralmente e tornar efetivos os direitos humanos das pessoas que vivem nas ruas”. As detenções foram consideradas “ilegais, abusivas, discriminatórias e seletivas”. Segundo a equipe de defensores, mais de mil pessoas foram presas arbitrariamente nos últimos dois meses. Após o pedido, o juiz Rafael Coria, de Rosario, recomendou à secretária de Justiça e de Segurança da província que evitasse detenções arbitrárias em procedimentos policiais.
As primeiras detenções arbitrárias ocorreram no início deste ano, aponta Julia Giordano, advogada da Assembleia Permanente pelos Direitos Humanos de Santa Fe. Ela defendeu algumas das pessoas detidas em 1º de fevereiro, que estavam participando de uma manifestação para protestar contra o ajuste fiscal implementado pelo governo Milei. Sete pessoas foram presas sem acusação alguma.
— Ainda existe uma investigação aberta, embora os presos nunca tenham sido acusados de delito nenhum — afirma a advogada, que disse não ter tido acesso às pessoas que defendeu.
A advogada considera que foi tomada “a decisão política de dar mais poder à polícia, que hoje está atuando de forma autoritária, sobretudo, nas periferias de Rosario”.
— Estão punindo os suspeitos de sempre, os mais vulneráveis — frisa Giordano, que considera as práticas adotadas em Santa Fe como as “de um Estado não democrático”.
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Apesar das manifestações contra o governo se multiplicarem na Argentina, pesquisa divulgada em maio mostrava que a popularidade de Milei continua em alta, entre 47% e 51% tem uma visão positiva do presidente.
Matilde Bruera, presidente da ONG Liga de Justiça Legítima de Santa Fe, concorda e afirma que “nada do que estão fazendo ajuda a reduzir o número de homicídios”.
— As práticas aplicadas são as mesmas que usaram na ditadura — diz Bruera, que já defendeu pessoas presas arbitrariamente.
Uma delas, contou a advogada, era uma moça que estava discutindo com outra mulher na porta de uma boate. Ambas fora detidas, segundo ela, sem razão alguma.
Para mostrar o modus operandi de um modelo inspirado no governo de Bukele, autoridades provinciais têm organizado visitas internacionais a Rosario. Estiveram recentemente na cidade o ex-candidato presidencial e ex-prefeito de Medellín Sergio Fajardo, e Claudia Carrasquilla Minami, conhecida como “Dama de Ferro”, que foi promotora, vereadora e diretora da organização Contra o Crime Organizado, também em Medellín, na Colômbia.