Na semana passada, turistas que se programavam para vir de São Paulo assistir ao Rock in Rio encontraram passagens até 400% mais caras para a data de 13 de setembro, estreia do festival, em comparação com a sexta-feira anterior. O preço para o ônibus leito na madrugada chegou a R$ 1.229. No Reino Unido, fãs da banda Oasis levaram um susto ao ver o ingresso para o show de retorno da banda saltar do valor anunciado, 148,50 libras, para mais de 350 libras (cerca de R$ 2.500).
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Os preços dinâmicos — que oscilam ao sabor da procura dos consumidores — são conhecidos por quem compra passagens aéreas ou usa com frequência aplicativos de transporte, como Uber e 99. Mas estão se espalhando para uma gama cada vez maior de produtos e serviços, muitos dos quais os consumidores nem desconfiam e só percebem quando os preços dão um salto. No exterior, diante da sofisticação cada vez maior dessa prática, agora turbinada pela inteligência artificial, ela já começa a entrar na mira de governos e agências reguladoras.
Professor de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV), Roberto Kanter explica que, nesse sistema, os preços mudam conforme o efeito dos algoritmos capazes de enxergar a média histórica de oferta e demanda. Engana-se quem pensa que apenas compras on-line estão sujeitas ao preço dinâmico:
— Uma grande rede do varejo de moda no Brasil melhorou sua margem em 8% a 10% usando o algoritmo, inclusive nas lojas físicas. Diminuía preços de itens com baixa saída e maximizava em peças em alta.
Segundo ele, na plataforma de aluguel de hospedagens AirBnb, a tarifa dinâmica é uma opção para ser acionada pelos brasileiros proprietários dos imóveis, que decidem também a margem de variação do preço. E o cenário no exterior, onde tarifas dinâmicas já aparecem em vendas para eventos culturais e esportivos, indica ainda que o uso do sistema pode em breve ser ampliado no Brasil.
Para a tarifa dinâmica funcionar, há dois requisitos básicos. É importante que a demanda tenha uma sensibilidade grande à variação de preço e a oferta seja restrita de forma temporal e quantitativa. Por isso, grandes e-commerces no país, há alguns anos, têm algoritmos programados para vasculharem todo o ambiente de negócios digital. Quando um site identifica que há muitos concorrentes com o produto, reduz seu preço para ficar mais competitivo. Quando há escassez, aumenta o valor.
— Dificilmente um player digital não terá precificação dinâmica. Às vezes, as empresas põem limites para as variações de preço, para que não sejam tão abusivas — explica Kanter.
A analista de crédito Fernanda Nascimento, de 34 anos, tem observando a mudança constante nos preços de ônibus desde que se mudou do Rio para São Paulo por causa de uma oferta de emprego. Ao menos uma vez por mês, ela visita a família e os amigos.
— Em semileito, geralmente custa de R$ 120 a R$ 130. Mas de janeiro até o carnaval, os preços ficam maiores, assim como nos feriados. E as passagens são mais baratas entre os dias 27 e 30, mas quem tem dinheiro no fim do mês? Acho injusto, pois é uma compra recorrente e, mesmo assim, não consigo me planejar.
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O Código de Defesa do Consumidor (CDC) do Brasil não proíbe a tarifação dinâmica. Mas tem artigos que coíbem abusos desse sistema. Igor Britto, diretor executivo do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), destaca que as pessoas não podem pagar preços diferentes pelos mesmos produtos ou serviços oferecidos nas mesmas condições:
— É uma regra da década de 1990, época das hiperinflações, que proíbe aumentar, sem justa causa, preços de produtos e serviços. E o que seria justa causa? Quando é necessário esforço maior para entregar o serviço ou produto. Já se alguém paga mais caro só para a empresa ter mais lucro no momento é discriminação, e nossa lei não permite.
O tema da tarifação dinâmica tem sido estudado em todo o mundo, segundo Roberta Leite, professora de Direito da Uerj, mas não há nada mais concreto do que no Brasil. Além do CDC, outras leis podem limitar essa prática. Roberta cita a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que coíbe a exploração da vulnerabilidade dos consumidores a partir da coleta de informações. As legislações de defesa da concorrência, por sua vez, têm sido muito usadas no exterior para proteger os consumidores de abusos na precificação dinâmica.
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— Lá fora, muito se questiona o uso da tarifa dinâmica por empresas dominantes em seus mercados como uma violação de leis antitruste — diz Roberta. — O mundo inteiro vê agora que é preciso mais proteção para os consumidores e discute como fazer isso.
Britto, do Idec, avalia que as autoridades deveriam colocar um freio nessa prática:
— Essas diferenciações de preço geram incerteza nas pessoas, que não conseguem programar gastos se só sabem o preço na hora da compra.
Para Kanter, é crucial ter limites éticos, até mesmo para a saúde das empresas. Ele sugere que é interessante o uso do algoritmo para ajustar promoções, melhorando a saída de produtos e a rentabilidade do estoque. A tarifação dinâmica, porém, pode virar uma armadilha se a percepção negativa do consumidor acabar virando um dano maior do que o ganho financeiro momentâneo.
Segundo a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), o preço é influenciado por fatores como o tempo e distância dos deslocamentos, categoria do veículo, demanda, horário e local.
Procurado, o AirBnb, disse que o anfitrião escolhe o preço por noite e pode definir valores, incluindo fins de semana, feriados ou grandes eventos. O Uber informou que o preço dinâmico é aplicado para incentivar que mais motoristas se conectem ao aplicativo e os usuários tenham um carro sempre que precisar.
Como funciona o preço dinâmico?
A partir de algoritmos, empresas podem ver o que as pessoas têm comprado e a que preço, e estimar a demanda futura com crescente precisão graças aos avanços recentes em seus softwares, em grande parte impulsionados por inteligência artificial. A prática ocorre muitas vezes com pouca ou nenhuma intervenção humana. Com o preço dinâmico, os preços podem subir, mas também cair, se a demanda diminuir.
Quais empresas adotam a prática?
As primeiras a usar foram as companhias aéreas, ainda na década de 1990. Pacotes turísticos e aluguel de carro são outros exemplos de serviços que já adotam essa precificação há muito tempo. Plataformas de mobilidade, como Uber, tornaram a prática mais conhecida ao expor claramente quando as tarifas dinâmicas são acionadas. Especialistas afirmam que hoje o preço variável é prática generalizada no comércio eletrônico e também já adotado por lojas físicas, como as de roupa.
Há alguma restrição legal?
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) não proíbe preços dinâmicos, mas há dispositivos legais, no próprio CDC e em outras leis, que podem ser usados para coibir abusos. Especialistas afirmam que se trata de uma prática de mercado, de reação a oferta e demanda, mas ressaltam que excessos podem representar um risco à reputação das empresas e levantar questionamentos legais.
Após os preços dinâmicos para ingressos de shows nos EUA e no Reino Unido provocarem a ira de fãs em redes sociais, o Congresso americano propôs uma lei para coibir práticas anticompetitivas por meio de algoritmos de precificação. E a Comissão Federal de Comércio pediu aos reguladores para redobrarem atenção aos efeitos da inteligência artificial na prática. No Reino Unido, o governo disse que iria investigar os preços para o show do Oasis, que chegaram a custar 350 libras (R$ 2.500). No caso dos ingressos, como costumam ser vendidos por uma única empresa, os reguladores buscam respaldo nas legislações antimonopólio.
Como o consumidor pode se proteger?
O consumidor pode fazer capturas de tela, ou seja, prints das ofertas, para exigir a manutenção do preço até o fim da jornada de compra, como prevê a legislação. E, ainda, se constatar depois que comprou um produto a um preço muito alto, pode usar o seu direito de arrependimento, previsto para compras on-line num prazo de até sete dias (no caso das companhias aéreas, este prazo é de 24 horas).
Consultar preços com o uso de janela anônima na internet permite “driblar” os algoritmos. Mas só funciona quando a tarifa dinâmica for individualizada, ou seja, programada para subir com base nas buscas frequentes de um consumidor ou na sua geolocalização, método usado na venda de passagens aéreas, por exemplo. Em outros produtos, a precificação dinâmica é feita em grupo, e a aba anônima não faz diferença.