Antes de Kamala, discursaram no mesmo palco representantes de praticamente todos os espectros políticos do Partido Democrata — a grande exceção foram os representantes de comunidades árabes e pró-Palestina, que tiveram negados pedidos para falar —, da ala mais tradicional, como o ex-presidente Bill Clinton e a ex-secretária de Estado Hillary Clinton, até os progressistas, como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez.
Também falaram republicanos contrários a Donald Trump, incluindo políticos eleitos, comunicadores, artistas e, no ponto mais emotivo da reunião, o presidente, Joe Biden, em clima de despedida. Todos apostando em Kamala como líder de uma coalizão poucas vezes vista entre os democratas.
— Juntos, Kamala e Tim [Walz, candidato a vice–presidente] mantiveram a fé na história central da América: uma história que diz que todos nós fomos criados iguais, que todos merecem uma chance e que, mesmo quando não concordamos uns com os outros, podemos encontrar uma maneira de viver uns com os outros — disse, na terça-feira, o ex-presidente Barack Obama. — Essa é a visão de Kamala. Essa é a visão de Tim. Essa é a visão do Partido Democrata. E nosso trabalho nas próximas 11 semanas é convencer o máximo de pessoas possível a votar nessa visão.
Desde que foi indicada para substituir Biden na eleição, em julho, Kamala incendiou multidões pelos Estados Unidos, com discursos marcados pelo entusiasmo de seus apoiadores e por palavras de esperança no futuro. Na Convenção, Kamala é unanimidade, revertendo o pessimismo que circundou a campanha de Biden até seu fim.
— O fenômeno da candidatura de Kamala Harris é algo parecido com alguém sobrevivendo a uma experiência de quase morte — disse Fernand Amandi, consultor democrata que ajudou Obama a vencer na Flórida em 2008 e 2012, ao site The Hill. — De repente, há uma nova apreciação pela vida. E ela se beneficiou desse novo sopro de vida.
Um entusiasmo que se refletiu em números: nos últimos 10 dias de julho, ela conseguiu mais doadores do que Biden nos 15 meses anteriores. Segundo a Reuters, a campanha arrecadou, em um mês, cerca de meio bilhão de dólares, ou R$ 2,8 trilhões.
Mas, usando uma metáfora esportiva, como sempre o faz seu candidato a vice (e ex-técnico de futebol colegial), Tim Walz, Kamala até agora só jogou em casa e com o apoio da torcida. Agora, é a hora de atuar em terrenos hostis e desconhecidos, por vezes diante de adversários difíceis.
No discurso desta quinta-feira, ela contará sua história de superação, como filha de mãe solteira, de classe média, que conseguiu se formar e subir degraus na carreira política, de promotora a senadora, e que agora tenta ser a primeira presidente dos EUA. Marcará um contraponto às ideias de Trump, atacadas ao longo dos últimos quatro dias, com menções recorrentes ao Projeto 2025, uma espécie de programa de governo da extrema direita do qual o republicano tenta se desvencilhar, ao menos em público. E, como a letra da música que pauta sua campanha, “Freedom”, da cantora Beyoncé, buscará se credenciar como a melhor pessoa para garantir a liberdade aos americanos.
— [Ela quer mostrar] que ela se importa com eles e que não é sobre ela e sim sobre eles — afirmou à CNN o ex-deputado Cedric Richmond, afirmando que Kamala vê a fala como sua “apresentação aos EUA, em sua própria voz”. — Seu principal objetivo é deixar o povo americano saber que ela acordará todos os dias lutando por eles.
A tarefa não é tão simples: não apenas em Chicago mas em todos os discursos até o dia 5 de novembro, a democrata deverá convencer os eleitores de que o voto nela não significa a continuação do governo de Biden, um dos mais impopulares das últimas décadas, mas sim o primeiro mandato de Kamala Harris. Precisará elencar, de forma clara, os principais temas que preocupam a população, como a inflação, calcanhar de aquiles de Biden, o futuro da economia e a manutenção de direitos, como sobre a saúde reprodutiva.
Igualmente importante, como definiu em artigo para o portal Político o consultor de mídia democrata Brian Goldsmith, Kamala tem que explicar, sem deixar lacunas, o que ela pensa, como ela pensa e o que pretende para o país. Desde sua indicação, Trump, seu vice, J.D. Vance, e outros republicanos tentam associá-la ao que há de mais radical na política. No começo da semana, o ex-presidente divulgou uma imagem falsa, criada por Inteligência Artificial, com a democrata discursando diante de bandeiras comunistas, e com frequência ele a chama de “Camarada Kamala”.
“Kamala deve definir sua própria filosofia antes que os republicanos façam isso por ela”, escreveu Goldsmith no Politico.
Kamala jamais figurou entre os grandes oradores do Partido Democrata, como Bill Clinton ou Barack Obama, que falaram em Chicago. Mesmo empolgando inicialmente em debates entre os pré-candidatos do partido, em 2019, não chegou à disputa de fato. Após chegar a vice-presidente, suas falas eram raras e por vezes deixavam assessores preocupados. Em uma entrevista à NBC, em 2021, quando questionada por que não tinha ido à fronteira com o México, deu uma resposta atravessada.
— E eu não fui à Europa — retrucou. — E, quero dizer, não entendo o ponto que você está levantando.
Meses depois, como contaram assessores e ex-assessores ao Washington Post, a equipe dela foi reforçada, lhe dando meios para se expressar melhor e lhe deixando mais confiante, inclusive internamente: nas reuniões sobre questões de segurança, era sempre a que se preparava melhor, e aos poucos foi encontrando brechas para pautar suas políticas.
— Na Casa Branca, você sempre pode inventar muitas boas razões pelas quais as pessoas não devem ser espontâneas — disse ao Washington Post Anita Dunn, ex-conselheira de Biden. — E ela estava no ponto em que pensava: “É isso que eu quero fazer”. E, certamente, acho que muitos de nós apoiamos isso.
De acordo com o New York Times, as primeiras versões do discurso desta quinta-feira começaram a ser feitas quando Biden ainda buscava a reeleição, quando ela falaria como candidata, mais uma vez, a vice — com a mudança, afirma o jornal, houve uma espécie de revolução no texto.
O principal autor é Adam Frankel, ex-redator de falas de Obama, e Kamala tem feito revisões frequentes, linha por linha. Os ensaios ocorreram em paralelo aos seus eventos de campanha, e incluíram teleprompters e sessões em até três horários diferentes. Ao contrário de Trump, ela foi à convenção apenas uma vez (o republicano foi todos os dias) e dedicou tempo aos ensaios no hotel, inclusive durante o discurso de Walz, na quarta-feira.
A vice entende que a fala vai definir seus rumos até novembro, e que não há margem para erro.
“Kamala tem a chance de deixar Chicago tendo neutralizado Trump na inflação, diminuído Trump na fronteira e tendo se definido como uma líder independente e democrata convencional”, opinou Goldsmith no Politico. “Se tiver sucesso, ela pode fazer a campanha sobre as questões que a favorecem, como direitos ao aborto e cuidados infantis, e abrir uma liderança modesta, uma que ela pode sustentar até novembro.”