“Este é o nosso momento, Estados Unidos. É quando nos levantamos. É quando rompemos. O futuro está aqui. Está ao nosso alcance”, afirmou, em uma das falas mais aguardadas da abertura da Convenção Nacional Democrata, a ex-secretária de Estado Hillary Clinton.
Candidata em 2016, Hillary falava sobre como a atual representante do partido nas urnas em novembro, Kamala Harris, estava diante de uma chance histórica de quebrar barreiras. Mas a declaração também simboliza um movimento que parece se consolidar em Chicago: a “passagem de bastão” entre as gerações de democratas, acompanhada por uma “energização” da base, similar à da campanha do principal orador desta terça-feira, o ex-presidente Barack Obama, em 2008.
— Há uma aura de Obama que, você sabe, a iluminou — disse ao New York Times Brian Brokaw, que comandou sua campanha para procuradora-geral da Califórnia, sobre como paralelos entre os dois já começaram a ser traçados há 16 anos. — As comparações vieram natural e rapidamente.
Ambos escolheram slogans convocando os eleitores à ação — “Sim, Nós Podemos”, de Obama, e “Vamos Vencer Isso”, de Kamala —, os dois esbanjam energia em seus discursos e apresentaram propostas de governo que ecoam entre a população, em especial sobre a economia. Os dois, que são negros (Kamala também tem raízes na Ásia), carregaram a mesma promessa de mudança, de esperança e de dias melhores, apesar de terem trajetórias políticas distintas.
— Eles são figuras políticas muito diferentes, mas certamente a empolgação em torno dela é familiar para aqueles de nós que estávamos por perto em 2008 — disse Jamal Simmons, ex-assessor de Harris, em entrevista à agência Reuters.
A relação entre Kamala e Obama antecede até mesmo o retorno dos democratas ao poder depois de dois mandatos de George W. Bush (2001-2009). Em 2007, quando Obama engatinhava em sua escalada pela indicação democrata, Kamala, então procuradora distrital de São Francisco, fez campanha para ele em plena noite de Ano Novo em Ohio, antes do início das primárias. Era uma aposta arriscada, afinal, a cúpula do partido apoiava Hillary — e a apoiou até o final das primárias. O futuro presidente, afirmam assessores, jamais se esqueceu disso.
— Ela era apenas uma apoiadora do presidente em uma época em que todo o establishment político não estava com ele — disse Buffy Wicks, que trabalhou na campanha de Obama naquele ano, ao New York Times. — Ela reservou tempo e energia significativos para ajudar a elegê-lo, e isso foi muito apreciado por ele.
Em números, o “efeito Obama” de Kamala parece render resultados. Em questão de semanas, ela conseguiu reverter uma campanha que parecia fadada à derrota, com Joe Biden em busca da reeleição, e impulsionou seus números nas pesquisas. Segundo a média de pesquisas elaborada pelo site RealClearPolling, Kamala tem 48,2% das intenções nacionais de voto, enquanto Trump surge com 46,7%. Na segunda-feira, uma sondagem do jornal Washington Post e da rede ABC News, em parceria com o instituto Ipsos, mostrou a democrata com 49% das intenções de voto, enquanto Trump surgiu com 45%. Essa foi a primeira vez em que apareceu à frente já fora da margem de erro.
Nos EUA, pesquisas nacionais servem como um termômetro do eleitorado, uma vez que a disputa se resolve nos estados, dentro do sistema do Colégio Eleitoral. E a democrata também registra avanços: no começo do ano, Trump batia Biden em praticamente todos os chamados “estados-pêndulo”, que, por não serem tradicionalmente alinhados a nenhum partido, são cruciais na disputa entre os candidatos. Agora, as sondagens a mostram em vantagem em estados como Wisconsin e Michigan, e empatada na margem de erro em locais como a Pensilvânia e o Arizona.
A pesquisa do Washington Post e da ABC News confirmou ainda uma tendência esperada entre os democratas: Kamala conseguiu avançar entre os jovens, os negros e os latinos, cruciais nas campanhas de Obama de 2008 e na de Biden de 2020, mas que estavam cada vez mais indecisos antes da mudança na chapa. Entre os eleitores com menos de 40 anos, o salto foi de 11 pontos percentuais (48% para 59%) em relação à última pesquisa, de julho, com Biden à frente. Entre os negros, um avanço menor (79% para 83%), com números quase idênticos entre os homens e as mulheres. Ela cresceu ainda entre entre os latinos (49% para 53%) e os brancos (39% a 42%).
— Alguns dos meus amigos que eu tenho tentado envolver nesta eleição antes diziam ‘ah sim, eu vou votar’ — afirmou à Reuters LaTosha Brown, cofundadora de um fundo voltado a organizações de base de eleitores negros, um movimento visto na primeira eleição de Obama. — Agora, eles estão indo além de dizer ‘eu vou votar’, mas também ‘me ponham para trabalhar’.
Além de Hillary, o primeiro dia da Convenção Democrata foi marcado por um emocionado discurso de Biden, hoje prestes a colocar um ponto final em mais de quatro décadas de vida pública. Após a desistência da reeleição, em julho, ele surgiu em Chicago em meio a aplausos e uma firme defesa de Kamala como o caminho certo para o futuro.
— Ela será uma presidente que nossos filhos poderão admirar. Ela seria uma presidente respeitada pelos líderes mundiais, porque ela já é. Ela seria uma presidente da qual todos nós podemos nos orgulhar. E ela seria uma presidente histórica que deixaria sua marca no futuro dos Estados Unidos — disse Biden.
Antes do presidente discursar, subiram ao palco algumas das novas estrelas do partido, pontuando, à sua forma, que a passagem de bastão não foi apenas no topo da chapa presidencial. E o alvo de algumas delas, como esperado, foi Trump.
— Sabemos que Trump venderia este país por um dólar se isso significasse encher seus próprios bolsos e molhar as mãos de seus amigos de Wall Street — afirmou, sob muitos aplausos, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, de 34 anos, representante da ala mais à esquerda do Partido Democrata. — E eu, por exemplo, estou cansada de ouvir sobre como um destruidor de sindicatos de segunda categoria pensa em si mesmo como mais um patriota do que a mulher que luta todos os dias para tirar os trabalhadores de debaixo das botas da ganância que pisoteiam nosso modo de vida.
Mallory McMorrow, de 37 anos, senadora estadual no Michigan e conhecida por suas publicações e vídeos virais em redes sociais, levou uma cópia de um livro considerado a base do chamado Projeto 2025, um plano com ideias ligadas à extrema direita e do qual Trump tenta se afastar publicamente, afirmando que o texto é um caminho para uma “ditadura”.
— Este é o Projeto 2025 — ela disse, levantando o livro de cerca de 900 páginas. — E o que quer que você pense que seja, é muito pior.
Outra a arrancar aplausos foi Peggy Flanagan, de 44 anos, vice-governadora de Minnesota. Caso Kamala seja eleita, o atual governador, Tim Walz, candidato a vice, deixará o posto, e Flanagan será a primeira representante dos povos nativos dos EUA a comandar um estado.
Lina Hidalgo, de 33 anos, juíza do condado de Harris, no Texas, usou seu tempo para elogiar a atuação de Kamala como vice-presidente.
— Ao longo dos anos, aprendi que Kamala Harris sempre nos telefona, e ela não apenas liga, ela entrega — disse Hidalgo, citando desastres naturais enfrentados pela sua região, e os pedidos de ajuda ao governo federal.
Em artigo no Washington Post, o colunista Philip Bump sintetizou esse choque entre o ocaso político de Biden e a entrada em cena das novas gerações: para ele, os democratas “finalizaram sua metamorfose em algo novo, em algo reorientado em torno de uma diferente parte de sua coalizão”, para concluir afirmando que “Biden teve seu momento, e o partido celebrou isso”, e que “então aquele momento acabou”.