Foi cerca de meia hora de mensagem clara e voltada para a classe média e os trabalhadores. No primeiro de uma série de discursos em que promete esmiuçar sua plataforma econômica para os próximos quatro anos, e a três dias do início da Convenção Nacional Democrata, em Chicago, a vice-presidente Kamala Harris mirou no que as pesquisas mostram ser a maior razão do nariz torcido dos eleitores para os quatro anos de Joe Biden na Casa Branca: o aumento do custo de vida. Em diferença gritante para o atual presidente, conseguiu transmitir com clareza as primeiras pinceladas do que seria a agenda econômica Kamala-Tim Walz em Washington. Pisou no acelerador do populismo, sem medo de ser feliz. E também sem explicar de onde tirará o dinheiro para as primeiras ações anunciadas, nem por isso menos urgentes.
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Alguns dos projetos, como o desconto no imposto federal para famílias com crianças e o crédito imobiliário para interessados em transformar em realidade o sonho da primeira casa própria, são, na ponta do lápis, expansões de ações já em curso. Outros, como a intervenção (não detalhada) no mercado para impedir preços abusivos de alimentos e medicamentos, têm, entre seus méritos, o de servir de farol à campanha democrata daqui para frente.
Das promessas apresentadas por Kamala em seu discurso nesta sexta-feira em Raleigh, no decisivo estado da Carolina do Norte, a mais ambiciosa, e com prazo definido de execução, foi a construção no primeiro ano de um eventual governo da ex-senadora da Califórnia de 3 milhões de casas para famílias de classe média. No ano passado, estudo da Moody’s Analytics detectou um déficit habitacional de 1,5 milhão de moradias nos EUA, o maior nos últimos 30 anos.
O custo do programa de incentivo será, incluindo investimento em um fundo voltado para o desenvolvimento e a aplicação de soluções locais para o problema, de US$ 290 bilhões. A campanha calcula que pelo menos 4 milhões de famílias “de classe média” serão beneficiadas pelo novo programa. Não se detalharam os preços das unidades construídas.
Se conseguir voltar à forma exibida quando seu adversário era Biden, Trump deve rebater a vigorosa narrativa populista democrata sem grande dificuldade. Especialmente em seu ponto nevrálgico, a “guerra aos oportunistas que aumentam o preço além da inflação”. Algo muito mais complexo de fazer do que Kamala fez parecer (mérito da candidata, problema para a possível futuro presidente).
A vice-presidente transportou a “culpa” pelo aumento do custo de vista dos cidadãos do atual governo para aproveitadores inescrupulosos, mas não respondeu a questões honestas que virão do lado republicano da disputa: por que então o governo não impôs a medida nos últimos quatro anos? Os aumentos, na régua da inflação, já não são asfixiantes para a classe média? De que modo a medida intervencionista ajudará no preço dos aluguéis aumentados seguidamente nos últimos quatro anos? E, claro, como exatamente essa interferência no mercado será feita?
Mas o maior dos pontos de interrogação segue no lado de lá da disputa. Ainda que carente de informações mais precisas, um tento indiscutível de Kamala foi o de oferecer, até agora, no discurso de Raleigh, cardápio econômico muito mais legível ao eleitor (graças, e não se trata de mero detalhe, à capacidade de síntese e convencimento da vice-presidente) do que o republicano.
Trump tratou, até agora, de forma mais ou menos confusa, da eliminação de impostos para gorjetas, tema caro à indústria de serviços, e de uma nova redução de taxas corporativas, como incentivo ao setor produtivo, traduzida pelos democratas como “mais um abraço de Donald aos ricos, como ele”. Segue pedindo que os eleitores pensem em quanto tinham no bolso quando ele era presidente, muito mais do que nos anos Biden. E não avança muito além disso. Sua bravata nacionalista e populista sobre o aumento na taxação de produtos made in China foi traduzida por Kamala no discurso desta sexta-feira como, “na prática, um aumento no custo dos produtos que vocês vão pagar diariamente,”. Vocês, neste caso, são os votos que a levarão, crê, à vitória em novembro. Com inflação, com tudo.