Quase um mês depois de anunciar que não concorreria à reeleição, o presidente dos EUA, Joe Biden, apareceu pela primeira vez ao lado de sua vice-presidente e candidata democrata à Casa Branca, Kamala Harris, em um discurso centrado em ações para reduzir o preço dos medicamentos, em Maryland. Biden tem sinalizado de que fará o possível para ajudar a derrotar o republicano Donald Trump em novembro, mas também de que defenderá seu legado na Presidência.
No estado de Maryland, um velho reduto democrata que desde 1988 tem votado no partido para a Presidência, Kamala iniciou o discurso louvando Biden, alguém que, segundo ela, dedicou “mais de 40 anos” a servir o país.
— Eu poderia falar a tarde toda sobre a pessoa que está aqui ao meu lado — disse a candidata democrata, em meio a uma longa salva de palmas ao presidente. — Nosso extraordinário presidente, Joe Biden.
Após as homenagens, Kamala afirmou que os americanos não podem ser forçados a escolher entre comprar medicamentos e pagar o aluguel, e acusou empresas farmacêuticas de inflarem os preços de algumas substâncias para turbinarem seus lucros. Ela citou uma lei aprovada pela Casa Branca que permite ao Medicare, o sistema de saúde gerido pelo governo federal e voltado a uma parcela vulnerável da população, negociar os preços de alguns remédios, algo que, até 2022, não era possível.
— Dessa vez, nós finalmente vencemos as grandes farmacêuticas — afirmou Biden, em um aplaudido discurso no qual ressaltou que a proposta não teve o apoio dos republicanos no Congresso, e no qual enumerou alguns dos medicamentos que, graças à negociação, ficaram mais baratos, como a insulina, espécie de símbolo do elevado preço dos tratamentos médicos nos Estados Unidos.
Apesar de ser um tema de primeira importância na disputa — mencionado brevemente por Trump na véspera, em um discurso que deveria ser sobre a economia mas que pouco falou do bolso dos americanos —, as ideias de Kamala para reduzir os custos de vida dos americanos ficaram em segundo plano diante da presença de Biden.
— Estou esperando por este momento há muito, muito tempo — disse Biden, ao iniciar sua fala, se referindo à iniciativa que permitiu a negociação sobre o preço dos medicamentos, ao mesmo tempo em que declarou que Kamala “será uma grande presidente”.
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Em uma linha que a campanha democrata está explorando, Biden citou o chamado Projeto 2025, um conjunto de propostas conservadoras, que vão desde a concentração de poderes nas mãos do Poder Executivo até limitações aos direitos reprodutivos das mulheres, e o associou diretamente a Trump. O republicano tem tentado se desvencilhar a proposta, considerada radical por eleitores moderados, mas sem muito sucesso: seu candidato a vice, J.D. Vance, escreveu o prefácio de um livro a ser lançado pelo presidente da Heritage Foundation, Kevin Roberts, responsável por supervisionar a iniciativa.
Na sexta-feira, Kamala Harris fará, na Carolina do Norte, seu primeiro discurso centrado em planos para a economia caso seja eleita. A expectativa é de que lance as bases para medidas de combate à inflação — o grande calcanhar de aquiles do atual governo —, pressione as grandes corporações para que evitem a manipulação de preços e faça promessas de corte de impostos e aumento de salários.
Apesar de defender o legado do presidente, assessores sinalizam que ela não vai abraçar sem restrições o “Bidenomics” (algo que a Casa Branca já declarou que ela ajudou a formular), a forma como a política econômica do democrata é chamada informalmente, e que avançar, em seus próprios termos, em temas como o combate à inflação e a transição rumo a uma economia verde. E a fala de sexta-feira ajudará a entender um pouco de seus planos para criar o próprio legado, caso seja escolhida pelos americanos em novembro.
Desde a decisão de abandonar a disputa presidencial, no dia 21 de julho, após semanas de intensa pressão do Partido Democrata, Biden tem evitado eventos públicos não ligados à Presidência, em especial sobre a campanha eleitoral. Segundo informações de bastidores, o presidente não tem ressentimentos em relação a Kamala, a quem deu seu apoio imediatamente após a desistência.
A assessores, ele tem elogiado a forma como a vice-presidente conseguiu transformar um momento de crise no partido e liderar a reviravolta que seus apoiadores esperavam, dando um novo fôlego para uma disputa que parecia cair no colo de Trump. E dentro da Casa Branca, Biden deu uma ordem para todos até então envolvidos na sua reeleição: a partir de suas desistência, elas e eles deveriam fazer o possível para levar Kamala Harris à Presidência, uma ordem que, em questão de horas, também se estendeu à cúpula de sua campanha.
Mas Biden tem sentimentos um tanto quanto distintos em relação a alguns de seus colegas de sigla, em especial a ex-presidente da Câmara, Nancy Pelosi. O presidente, segundo relatos publicados na imprensa americana, não conversou com a deputada, a quem conhece há décadas, mas que foi instrumental na estratégia para afastá-lo da disputa pela reeleição, um papel que, na visão de assessores, ela não queria ter desempenhado.
— Pessoas que conhecem Pelosi sabem que ela está sempre focada nos negócios, e o negócio é ‘como venceremos’ —disse David Axelrod, ex-assessor do presidente Barack Obama, ao New York Times. — Ela claramente fez um julgamento, ela compartilhou esse julgamento. Não caiu bem para o presidente, compreensivelmente, e tenho certeza de que a magoa que ele sinta o que sente. Mas também acho que em seu coração ela sabe que fez a coisa certa para o partido e para o país.
Em uma entrevista à CNN, na semana passada, na qual ela confirmou não ter conversado com Biden desde a desistência, ela revelou ter aconselhado o democrata a não participar do debate de junho, no qual seu péssimo desempenho deu início ao fim da candidatura, louvou seu legado à frente da Casa Branca e disse que o admira, mesmo diante do aparente ressentimento.
— Ele sabe que o amo — disse Pelosi.
Andrew Bates, porta-voz da Casa Branca, afirmou à CNN que a suposta intriga com Pelosi não corresponde à realidade, e que a atenção do presidente “está focada no presente, não no passado”. E foi isso que tentou demonstrar o lado de Kamala Harris nesta quinta-feira, e como quer demonstrar na semana que vem, quando o partido se reúne em Chicago para a Convenção Nacional.