Apenas os recursos públicos oriundos de tributos serão capazes de mobilizar os “trilhões” necessários para investimentos na mitigação e na adaptação às mudanças climáticas e no enfrentamento da fome e pobreza, avalia a economista indiana Jayati Ghosh, professora da Universidade de Massachusetts, em Amherst, nos EUA, numa crítica à abordagem que defende a mobilização de capitais privados para esse fim.
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Uma tributação global dos super-ricos, como propõe o Brasil no âmbito do G20, grupo das maiores economias do mundo cuja presidência rotativa o país ocupa este ano, parece um melhor caminho, disse Jayati ao GLOBO, durante um intervalo da conferência global da rede de pesquisa Associados Internacionais de Economia do Desenvolvimento (IDEAs, em inglês), organizada pelo Instituto de Economia da UFRJ na semana passada, no Rio.
Após a conferência, onde debateu sobre reformas em organismos multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, a economista ainda deu uma palestra na sede do Ipea no Rio, sobre a relação entre o endividamento público e o enfrentamento das mudanças climáticas em países em desenvolvimento. A seguir, os principais trechos da entrevista:
A sra. já criticou a estratégia dos bancos multilaterais, como o Banco Mundial e o BID, de tentar ampliar o financiamento para o enfrentamento das mudanças climáticas e da fome e pobreza com a mobilização do capital privado. Por que esse não é o melhor caminho?
Há muitos motivos. O primeiro, claro, é que, até agora, isso falhou, apesar de toda a falação. Estamos ouvindo sobre blended finance, ou parcerias público-privadas, desde há pelo menos uma década. Houve várias tentativas, e quase todas falharam. Não temos nenhum dinheiro, na verdade. A evidência é que não funciona.
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Outro motivo para ficarmos preocupados é que, pela natureza desses investimentos, eles não são, em sua maioria, lucrativos. Não podemos fazer o setor privado ser algo que ele não é. O setor privado deve ser lucrativo. É da sua existência. Sim, o setor privado investirá em coisas como veículos elétricos, painéis solares, talvez até hidrogênio verde, mas não é preciso nem oferecer incentivos para isso. O setor privado consegue ver que há uma lucratividade potencial aí.
Outro problema é que a maioria do financiamento climático que realmente precisamos é, essencialmente, para adaptação, porque sabemos que as mudanças climáticas já estão afetando a agricultura e causando migrações. Tudo o que se faça para adaptação não é lucrativo. Muito da mitigação não é lucrativo. Mesmo lidar com perdas e danos não é lucrativo.
Então, não podemos esperar o investimento privado para isso. Ou, se fizermos isso, teríamos que oferecer incentivos tão grandes que seria mais barato para o setor público fazer isso diretamente.
Então precisaremos aumentar a arrecadação com tributos?
Com certeza. Precisamos de mais recursos públicos.
Uma tributação global sobre os super-ricos, como propõe o Brasil no G20, é um caminho melhor do que mobilizar o capital privado?
Não acho que os dois caminhos são incompatíveis. Precisamos do investimento público para uma série de coisas, porque o setor privado não irá investir e porque é mais barato o setor público investir diretamente do que oferecer incentivos.
Agora, para os recursos públicos que precisaremos mobilizar, definitivamente, não deveríamos optar por mais tributação indireta sobre os pobres, como fizemos até aqui. Deveríamos tributar os super-ricos, também porque temos tanta desigualdade. E essa desigualdade está crescendo. Os super-ricos estão ficando super mais ricos. A renda deles dobrou desde a pandemia.
Há fortes argumentos também para tributar os super-lucros das grandes companhias. Depois da pandemia e da Guerra na Ucrânia, grandes companhias do agronegócio, de tecnologia da informação (TI) e dos setores financeiro e farmacêutico tiverem super-lucros.
São lucros que foram gerados por causa de poder de mercado, não porque os custos aumentaram. E isso deve ser tributado, porque, do contrário, será um incentivo para que as companhias usem seu poder de mercado para extrair mais dos consumidores.
A mobilização da sociedade sobre o tema é importante para a tributação dos super-ricos avançar?
É absolutamente crítico. Quem não se beneficiaria de um tributo desses? Apenas os muito ricos e as companhias muito grandes. Se adotássemos essa tributação, seria um avanço enorme para as pessoas normais, inclusive dos EUA e do Reino Unido.
É porque as pessoas normais não se dão conta disso que os governos têm a habilidade de se opor a acordos globais desse tipo. Então, precisamos de mais conhecimento. Impedir a tributação dos super-ricos não é do interesse das pessoas normais, da economia ou do planeta, porque não temos o dinheiro para fazer os investimentos básicos para salvar o planeta.
Mobilizar a sociedade sobre isso não é mais difícil em tempos de polarização política?
Esse conhecimento diminuiria a polarização. Uma parte do crescimento da extrema direita é que há muitas pessoas estão infelizes com sua situação. Eles se sentem frustrados e com raiva. E estão loucos com as elites e os mais ricos. Políticas como essa levariam e menos raiva e menos polarização.
O comunicado final da reunião ministerial do G20 no Rio registrou a preocupação com o endividamento público dos países pobres. Vê chances de propostas sobre isso avançarem?
O alívio das dívidas públicas é essencial. E acho que será inevitável. No momento não é inevitável porque os países que têm realmente enfrentado estresses de dívida não são considerados sistemicamente importantes.
Quando qualquer devedor é visto como sistemicamente importante, todos os governos respondem rapidamente, e as regras são jogadas pela janela. Nos EUA, quando o Silicon Valley Bank teve problemas, de repente, todas as regras foram pela janela e o banco foi salvo com dinheiro do contribuinte rapidamente. Quando o Credit Suisse teve problemas, trabalharam durante o fim de semana e fizeram coisas contra a lei bancária da Suíça, para forçar a fusão com o UBS.
No entanto, quando Gana, Zâmbia, Chade, Quênia ou Sri Lanka estão sofrendo, e as pessoas estão morrendo e há devastação econômica, isso não afeta o sistema financeiro global. Então, eles deixam acontecer.
Há um cinismo profundo na abordagem do endividamento. Eles (representantes dos países desenvolvidos) topam fazer declarações legais, mas não querem fazer algo, no limite, porque não é algo que vá sacudir o coração do sistema.
Um caminho para mudar seria os países devedores se juntarem, pelo menos trocar informação, talvez fazer demandas comuns. E precisamos de mais vozes nas economias avançadas, reconhecendo que o excesso de endividamento não é do interesse de ninguém.
Qual o ponto mais importante da reforma das instituições multilaterais da economia, como o FMI e o Banco Mundial?
As cotas e as fatias de votos não refletem as reais condições da economia global. Isso porque os países ricos estão segurando as suas fatias e têm o controle.
As reformas passam por uma decisão política então?
Sim. Essas instituições não mudarão a menos que sejam forçadas a isso. E não serão forçadas a mudar até que sintam que se tornarão irrelevantes se não o fizerem. Muitos novos arranjos estão surgindo e muitos estão surgindo não apenas porque os países querem isso, mas porque não têm opção, por exemplo, quando há a imposição de sanções.
Novos arranjos são iniciativas como o Banco dos Brics?
Não só, mas também os swaps de taxas de câmbio (mecanismo que permite transações financeiras sem passar pelo dólar), que a China tem usado massivamente. Crédito para o comércio exterior, que é algo que não se acompanha muito, mas há muito acontecendo entre os países emergentes, incluindo a China. Novas rotas comerciais, que estão surgindo por causa de sanções.
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Lembra do SWIFT, que era a plataforma básica das transações financeiras? De repente, os EUA excluíram a Rússia do SWIFT (como sanção, após a invasão da Ucrânia). O resultado foi que a Rússia desenvolveu seu próprio sistema, e a China também.
E essa sanção parece não ter tido efeito…
Não teve. Pensaram que isso deixaria a Rússia de joelhos, destruiria a economia russa, mas isso não aconteceu. O mundo está mudando. Muitos dos arranjos anteriores eram completamente controlados pelo G7. Não é mais assim.
O crescimento econômico acelerado da Índia tem chamado a atenção. Tem algo que o mundo possa aprender com o modelo indiano?
A grande lição do desenvolvimento indiano dos últimos 20 anos é como não fazer. Todos pensam que a Índia é uma história de sucesso porque está crescendo, e é verdade, o país não teve uma grande uma grande crise econômica, não teve uma crise financeira e não tem uma grande dívida externa, e isso é positivo, mas quando olhamos por dentro da economia, o que está acontecendo?
Tivemos duas décadas de crescimento anual entre 5% e 8%, e os salários reais não cresceram, o emprego não cresceu. Isso é possível? Faz pensar que, talvez, haja algo errado com os dados do PIB, mas, de qualquer jeito, definitivamente, há algo errado com o jeito como o PIB é distribuído.
Os 10% mais ricos nunca estiveram tão bem. Somos um dos países mais pobres do mundo, com o maior número de bilionários. O número de bilionários dobrou, o número de centimilionários (que têm fortunas na casa de centenas de milhões) triplicou.
A Reforma Tributária do Brasil tem algo a aprender com a reforma feita na Índia alguns anos atrás?
São reformas muito diferentes. A ideia da GST (Imposto sobre Bens e Serviços, o IVA da Índia) foi de criar um sistema nacional unificado de tributos indiretos, com regras muito simples. Não foi realmente um sucesso, porque temos oito alíquotas diferentes, o que é incrivelmente complicado. Foi apresentado como um tributo bom e simples, mas não é.
Também atingiu em cheio as atividades informais. Empresas informais respondem por 85% do emprego na Índia. Essas atividades informais foram negativamente atingidas por uma série de políticas. Primeiro, a desmonetização, uma grande quantidade de dinheiro foi retirada do mercado. Depois, teve a GST e, então, a pandemia.
A GST foi responsável pelo crescimento econômico? Ajudou o setor formal, mas foi uma má notícia para o setor informal. Definitivamente, o Brasil deveria olhar para o efeito da Reforma Tributária no setor informal.
Também aconselharia a fazer a reforma lentamente. Não dá para correr. Fizemos em três meses e isso não dá tempo de preparação, de mostrar quem será afetado.