O governador Tim Walz é o que, na política americana, se chama de “cão de ataque”. Dos muitos significados de sua escolha por Kamala Harris para ser o vice da vice na disputa pela Casa Branca contra a chapa trumpista puro-sangue Donald Trump-J.D. Vance, o com maior efeito imediato é a senha dada à militância de que nos próximos 90 dias os governistas partirão sem rédeas para a briga com Trump — e na seara populista. Ataque, ataque, ataque.
Com a alcunha de “guerreiro sorridente”, Walz se elegeu duas vezes para o governo de Minnesota apresentando-se como cidadão comum, professor secundário, treinador de futebol americano da equipe da escola, veterano da Guarda Nacional, pai de família, direto, pragmático, “gente como a gente”. O raro político bonachão mas ao mesmo tempo imperdoável com o adversário. E, importante: sem papas na língua.
Sua estreia na campanha presidencial este ano se deu em grande estilo. Enquanto a maioria de seus competidores pelo posto, entre eles o governador do estado decisivo da Pensilvânia, Josh Shapiro, oito anos mais jovem do que o político do Meio-Oeste e visto por parte da esquerda do partido como excessivamente pró-Israel, multiplicavam-se em elogios à ex-senadora da Califórnia, Walz mirou no outro lado da disputa. Foi ele quem primeiro carimbou no trumpismo a marca de serem “os esquisitões”, que apresentavam aos americanos propostas e mensagens “extremistas”, entre elas a sugestão do senador J.D. Vance de que cidadãos com filhos deveriam ter um peso no voto popular maior do que os solteiros ou casados sem cria.
O imediato “oi?” de Walz para a ideia despropositada tirou, ao menos momentaneamente, o foco de “diferente” da vice-presidente negra, de origem indiana, que fez sua carreira política na ultraliberal São Francisco. Ele conseguiu algo que os democratas precisam seguir fazendo para ganhar em novembro: mover Kamala para o centro mesmo sendo o favorito, entre os pré-candidatos a vice, da ala esquerda do partido. Agora quem martelava contra um dos “absurdos trumpistas” não era só Jennifer Aniston (que deu um schlap hollywoodiano sem tamanho em Vance), mas Walz, que se apresenta como espelho da maioria do país. Viralizou.
Veterano militar, professor secundário, sessentão, cabeleira branca saindo de cena em benefício de crescente careca, sorriso aberto, natural dos cafundós do Nebraska, o político é a cara do Meio-Oeste, região que simboliza a polidez interiorana no imaginário americano. E comanda estado com perfil demográfico ao dos três vizinhos da “muralha azul” que os governistas precisam vencer em novembro: Pensilvânia, Wisconsin e Michigan, com muitos votos de trabalhadores brancos sem diploma universitário.
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Sem perfil nacional consolidado, Walz não titubeia em apoiar temas caros hoje à maioria dos eleitores da região decisiva para a eleição, entre eles o direito ao aborto. O faz pelo viés de “ataque do Estado à vida do cidadão”. Conseguiu ser campeão da esquerda do partido mesmo defendendo o porte de armas e se posicionando no meio — entre as forças internas que pedem regulamentação maior e urgente no setor para evitar os constantes massacres e os que cultuam a mentalidade de fronteira —, mostrando independência, tão cara a quem vive fora das costas liberais do país.
Um primeiro olhar em suas fotos, e pode-se até pensar que Walz é uma repetição do presidente, duas décadas mais novo, uma espécie de “Joe de Scranton”, como Biden se vendeu nas eleições de 2020, lembrando de suas raízes em sua cidade natal, na Pensilvânia operária dos anos 1940. Em um olhar mais superficial, seria como se a chapa Obama-Biden tivesse sido agora virada ao avesso. Mas Walz não é, para o bem e para o mal, Biden 2.0.
Não deve faltar animação, ousadia e testosterona nos palanques da campanha democrata em que o governador estiver presente, e sem uso de teleprompter. Mas os riscos também aumentam. O veneno político de Walz — que comandou nos últimos anos a poderosa, e rica, associação de governadores democratas, central na distribuição de fundos eleitorais — é temido por seus adversários no Minnesota. Mas o professor que implantou a merenda gratuita em toda rede escolar local quando governador também namora com o risco político. A própria tirada dos “diferentões” arrepiou veteranos estrategistas democratas que lembraram a declaração da então candidata Hillary Clinton em 2016 de que metade dos eleitores de Trump eram “deploráveis”.
Walz, avaliam, passou no limite do sarrafo ao centrar fogo nos líderes da direita e não na militância. Mas o tiro, ponderam, poderia ter saído pela culatra. Por sua vez, sua escolha não ajuda, de modo claro, Kamala a enfrentar seus dois problemas mais óbvios: a inflação dos anos Biden, ainda sentida no bolso dos eleitores, e o número recorde de imigrantes não-documentados que entraram no país durante o governo democrata. A campanha republicana bate na tecla de que era justamente a fronteira sul o quinhão mais importante da vice-presidente na atual administração e pede para os eleitores fazerem uma conta simples: tinham mais dinheiro nos anos Trump (sem os efeitos da pandemia e da guerra na Ucrânia) ou Biden? A capacidade de falar diretamente com o eleitor, inclusive usando termos típicos do americano que vive nas zonas rurais do país, e a experiência militar de Walz seriam trunfos, respectivamente, na conversa sobre a economia do dia a dia e no cuidado com a entrada de pessoas não–documentadas. Parece pouco.
Mas os estrategistas democratas também não deixaram passar despercebida outra mensagem central da escolha do governador de 60 anos para compor a chapa presidencial. Sim, Walz traz algo que Kamala definitivamente não tem: táticas e movimentos para enfrentar os adversários em seu próprio ringue populista. Ele é, no entanto, pouco menos de um ano mais velho do que a vice-presidente. Impedido pela Constituição americana de disputar a reeleição se vencer em novembro, Trump sinalizou com J.D. Vance, de 39, que vê o futuro do Partido Republicano à sua imagem e semelhança. Já a democrata deixou claro nesta terça-feira crer que a próxima década tem nome e sobrenome no comando do lado democrata. Os dela. Uma prova de autoconfiança e de crença na vitória em novembro, com potencial de animar ainda mais uma militância já eletrizada.