A primeira-ministra de Bangladesh, Sheikh Hasina, de 76 anos, renunciou ao cargo e fugiu do país depois de semanas de protestos que deixaram, só nesta segunda-feira, ao menos 56 mortos — em pouco mais de um mês, o total é de mais de 300. Multidões em júbilo celebraram a notícia nas ruas, com muitos invadindo o palácio ministerial, saqueando e vandalizando parte da ex-residência da premier. Horas depois da renúncia, o presidente Mohammed Shahabuddin ordenou a libertação do ex-primeiro-ministro e líder da oposição, Khaleda Zia, e o chefe do Exército, Waker-Uz-Zaman, anunciou que as Forças Armadas vão supervisionar a formação de um governo interino, afirmando que “todas as mortes e toda injustiça” serão “examinadas”.
— O país sofreu muito, a economia foi afetada, muitas pessoas morreram, é o momento de acabar com a violência — disse Waker, em um discurso televisivo.
Hasina, que governava Bangladesh desde 2009, foi transportada para o aeroporto da capital, Daca, e, de acordo com a rede britânica BBC, embarcou em um helicóptero em direção à cidade de Agartala, na Índia.
— Ela e sua irmã deixaram Ganabhaban [a residência oficial da primeira-ministra] e seguiram para um local mais seguro — declarou uma fonte à agência francesa AFP, que pediu anonimato. — Queria gravar um discurso, mas não teve a oportunidade de fazer.
No país muçulmano de 171 milhões de habitantes, cuja economia é muito dependente da indústria têxtil, os protestos começaram pacíficos no início de julho. Inicialmente contrárias à reintrodução de um sistema de cotas que reservava mais da metade dos empregos públicos para determinados grupos — considerado “arbitrário” e favorecendo pessoas próximas ao governo —, ganharam o corpo em um movimento antigoverno, para o qual Hasina era vista como uma líder cada vez mais autoritária.
Dada a magnitude dos protestos, o Supremo Tribunal reduziu, mas não revogou, o contestado sistema de cotas, mas os atos continuaram, assim como a violência. Manifestantes e partidários do governo se enfrentaram em todo o país com pedaços de pau e facas, e as forças de segurança abriram fogo contra os protestos.
Só no domingo, o dia mais mortal desde o início da mobilização popular, confrontos violentos com as forças de segurança deixaram 94 pessoas mortas, incluindo 14 policiais. Nesta segunda-feira, pelo menos 44 dos 56 mortos foram levados para o Hospital Universitário de Daca, informou um correspondente da AFP, dizendo que todos tinham ferimentos a bala. A polícia relatou 11 mortes em outras partes da capital e uma morte na segunda cidade do país, Chitagon.
Imagens de redes de TV locais mostraram milhares de manifestantes invadindo a residência oficial da primeira-ministra, acenando para as câmeras e comemorando a queda do governo. Dentro do palácio de governo, repórteres no local descreveram a destruição de móveis e peças de vidro. Postagens em redes sociais mostraram pessoas removendo móveis, roupas de cama, plantas em vasos — e até animais, incluindo galinhas, patos e coelhos. Um jornalista local ouvido pela AFP afirmou que, em certo momento do protesto, mais de 1,5 mil pessoas estavam dentro da residência oficial.
Do lado de fora, milhares de pessoas exibiram bandeiras e algumas subiram em um tanque. Outros manifestantes derrubaram uma estátua do pai de Hasina, Mujibur Rahman, herói da independência do país em 1971.
— Queremos um país livre de corrupção, onde todos tenham o direito de expressar sua opinião — disse Monirul Islam, um manifestante de 27 anos que comemorou nas ruas da capital, Daca.
Execuções extrajudiciais
Hasina, que governou pela primeira vez entre 1996 e 2001, iniciou seu último mandato em janeiro, após uma eleição marcada pelo boicote da oposição, que denunciou o pleito como nem livre ou justo. Grupos de defesa dos direitos humanos acusaram seu governo de usar instituições para se consolidar no poder e reprimir a dissidência, inclusive por meio de execuções extrajudiciais de ativistas da oposição.
O general reformado Ikbal Karim Bhuiyan, um respeitado ex-chefe do Exército, pediu no domingo a retirada das tropas das ruas e a autorização aos protestos, um gesto que foi interpretado como um desafio a Hasina. O movimento contra o governo ganhou o apoio de vários setores da sociedade, incluindo estrelas de cinema, músicos e cantores.
— Chegou a hora do protesto final — declarou Asif Mahmud, um dos principais líderes do movimento de protesto.
A União Europeia apelou à “moderação” nesta segunda-feira e pediu uma transição “ordenada e pacífica” para um governo eleito democraticamente.
Analistas apontam que a renúncia de Hasina e sua fuga após 15 anos não significa que o país terá dias fáceis pela frente. Ela há muito tempo esmagou a oposição política e colocou muitos de seus líderes na prisão e, embora eles devam ser libertados neste novo momento, o processo de concordar com um governo interino pode ser turbulento. (Com AFP e NYT)