Franco pediu demissão do BC em janeiro de 1999, quando o governo, logo após a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, decidiu flexibilizar o regime de bandas cambiais, diante da sangria das reservas internacionais — pouco depois o real passaria a flutuar livremente. Franco era contra a mudança no câmbio.
Na entrevista ao GLOBO, a terceira de uma série com os protagonistas do Plano Real, ele avalia que o pior momento da implantação do plano foi na véspera do lançamento da Unidade Real de Valor (URV), que meses depois seria convertida no real, numa reunião no gabinete do presidente Itamar Franco com o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso:
— Nesse dia, eu vi o ministro da Fazenda pedir demissão três vezes, não foi uma, foram três vezes. Levantar da mesa e dizer: “Assim não dá. Eu vou me embora”.
Leia abaixo a íntegra da entrevista do economista. E veja, neste vídeo curto, a visão de Gustavo Franco sobre qual foi a maior conquista do Plano Real e o que ainda precisa ser feito para a estabilidade da economia brasileira.
30 anos do Real: Gustavo Franco
Qual a importância de ter uma moeda estável por 30 anos, o que isso representa?
Hoje todo mundo gosta do real, mas no começo não foi assim, não. Vivemos a experiência de degradação da moeda. Quem viveu terá guardado na memória de como é profundo, é uma ferida profunda. O simbolismo associado à moeda é grande. A moeda é como a bandeira e o hino. Vê-la derreter é a sensação que você tem vendo a bandeira pegar fogo. É ruim. É um pedaço de cada um de nós. A lembrança do período da hiperinflação no Brasil é um torpor de decadência, de valores que vão se desagregando em valores monetários e outros valores também. Também nos fez piores. É uma experiência ruim para o nosso organismo. Talvez tenha estragado a nossa saúde econômica para sempre. Como o alcoolismo faz com as pessoas que tiveram o vício. Nós nos livramos dele faz 30 anos. É muito bom. Mas a experiência foi super profunda, difícil, marcante, e a batalha foi difícil.
“Tendo a moeda estável, o horizonte se abre como no fim de uma névoa. Enxergamos nossas verdades. Nem todas são agradáveis”
Foi uma conquista do povo brasileiro, diante do que passou anteriormente?
Recuperamos o nosso futuro e junto com ele um símbolo nacional que também resgatava o nosso passado e todos os heróis nacionais humilhados em cédulas que passaram a valer nada (antes do real, Barão de Mauá, Machado de Assis, Marechal Rondon foram algumas das personalidades que estampavam as cédulas, mas com a inflação alta, essas cédulas perdiam valor muito rápido). Hoje a gente tem o real. Imagina no tempo que a gente não tinha o real. O que a gente tinha? Era o imaginário, era o delírio. Vivemos um delírio longo, que foi crítico nos últimos dez anos, até 1994, a inflação média mensal deve ter sido 15%, 20% ao mês, em média. Impensável com os olhos de hoje. As pessoas têm uma memória disso, dos pais, de ouvir na mesa de jantar histórias folclóricas de inflação. O que a gente tem hoje (de inflação) durante um ano inteiro era de um fim de semana. Foi triste? Foi. Foi horroroso.
Que tipo de reação teve ao plano na época?
Vinte e quatro horas depois do acontecido, começa todo mundo a achar muito bom, tem um quase deslumbramento. Que coisa boa a moeda estável, uma coisa tão simples que nem bem tem nome, uma vida econômica normal, com uma moeda normal de um país normal. E aí parece uma coisa trivial, mas não é. Trinta anos depois, com o distanciamento que esse tempo todo nos permite, todo mundo gosta, não tem mais ninguém que seja contra. E é difícil até explicar como, quando foi feito, quase todo mundo era contra. Tem uma explicação, ou pelo menos duas. Uma é que era o sexto plano econômico, e todos os outros deram errado. O plano econômico parecia fazer mais estrago do que a própria inflação. Então, se é para ter um tratamento que dói mais que a doença, deixa a gente ficar doente. Então, o sexto plano econômico não animou ninguém. Todo mundo tinha muita desconfiança.
Eu lembro bem dos momentos anteriores ao anúncio da URV a postura da opinião pública, da imprensa, dos agentes econômicos… Todo mundo estava muito desconfiado, ao mesmo tempo, torcendo: “Faz aí um negócio que dê certo, mas olha lá o que vai fazer” Faz o plano, mas não pode fazer… Tinha uma lista de coisas que não se podia fazer. Cada pessoa tinha uma lista. Muita gente queria congelamento de preço, que era exatamente uma coisa que não íamos fazer de jeito nenhum. Não foi um grande acordo nacional. Na verdade, foi uma coisa escrita por gente que conhece essa tecnologia e conhece essa técnica. Quem desenha uma vacina contra Covid é quem entende de vacina, não é uma assembleia do povo que decide. A gente fez, botou em operação e funcionou. Depois de 24 horas, era um país transformado. O que parecia incompreensível veio muito naturalmente para dentro da rotina das pessoas.
Como foi a montagem jurídica do Plano?
Todos nós éramos economistas de sala de aula, de pesquisadores do assunto. Mas uma coisa é o quadro negro, outra coisa é o Diário Oficial. Entre um e outro tem os advogados, porque o estado democrático de direito fala um idioma que é o das leis, que é onde estão os advogados profissionais. Eles têm a compreensão da realidade conforme os filtros e o idioma deles. É preciso falar a língua deles. Você não vai fazer poesia numa língua estrangeira se não entender muito bem como é a gramática deles. E foi isso que a gente teve de fazer. Aprender a língua deles não é chamá-los para fazer a nossa música. Não. Vamos conversar e fazer juntos no mesmo idioma. E aí funcionou belissimamente.
As coisas interdisciplinares no Brasil são sempre complicadas. Nos outros planos deu errado. Dessa vez, vamos conversar. E aí funcionou muito bem. Algumas pessoas especiais ajudam, é claro, mas a essência do diálogo interdisciplinar foi, enfim, a alma. Saiu certinho. Voltando para a universidade depois de tudo isso, quando eu saí do Banco Central comecei a dar um curso. O assunto era o diálogo entre a economia e o direito nos assuntos da moeda e o Plano Real, como o caso bem-sucedido. Esse curso depois virou um livro que se chama “A Moeda e a Lei”. O título diz o que é, uma história monetária do Brasil de 1933, onde começa essa aventura do papel moeda até finalmente se arrumar o padrão monetário, o real, em 1994.
Em um dos seus artigos no livro “30 anos do Real: crônicas no calor do momento” (que reúne artigos dele, do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan e do economista Edmar Bacha sobre o plano), você diz que o plano fez uma revolução silenciosa.
Quando a pessoa está em com dor, não existe outro pensamento senão fazer parar a dor. É um país quase que sob tortura. Nessas condições, não existe vida inteligente, não existe cálculo econômico, não existe rotina, não existe percepção das nossas possibilidades, não existe futuro. Isso tudo a gente ganhou, tendo uma moeda estável, sobretudo a sensação de futuro, o horizonte que se abre como uma grande névoa que de repente baixou. Enxergamos, assim, nossas verdades. Nem todas são agradáveis, tem muita desigualdade, muitos problemas. Não estamos condenados a crescer como na Ásia. Na verdade, descobrimos que para fazer isso precisa fazer outras coisas que pertencem a uma outra agenda, reformas e tudo isso, onde a gente não está andando. Mas agora a gente está vendo isso. Antes sequer dava para ver.
Ao longo desses 30 anos, onde avançamos por causa da estabilidade?
Bom, nós tínhamos uma doença terminal, a hiperinflação. Claro que os países não morrem, mas eles conseguem afundar cada vez mais e mais e mais. Era o tipo de trajetória que a gente vinha tendo, de aprofundamento de tudo que a gente tem de ruim, de desigualdade, de pobreza, de tudo isso. A inflação causa isso tudo, a inflação era um combustível importante para desigualdade, pobreza, problemas, enfim, críticos para nós. Tirar a inflação já melhora esse panorama, não elimina o problema, mas nos melhora e nos coloca em posição de endereçar esse problema, ou do crescimento, de uma forma inteligente.
Ainda estamos vivendo problemas com os estados?
A União e os Estados e os municípios, no ambiente de inflação, meio que não tinham limites para irresponsabilidade. Parecia não haver consequência também, porque era como se houvesse uma fábrica de papel pintado que aparentemente resolvia os problemas quando criava outros maiores do que aqueles que resolvia. E era preciso encerrar esse ciclo colocando todas essas unidades públicas, a União, os estados e os municípios, bem como os bancos públicos, todos vivendo dentro dos seus próprios meios para simplificar bem a história. E ninguém tinha contas equilibradas. A União tinha um déficit gigante, os estados tinham déficits gigantes, a Previdência tinha déficit gigante, os bancos públicos todos quebrados, os estaduais, federais. Ou seja, o estrago que a inflação fez no decorrer do tempo em tudo o que era público é incomensurável. Acho que um dos acertos do real foi escalonar os problemas. Não dá para resolver tudo de uma vez e demorou muito tempo.
Os acertos com os estados foram se desdobrar ao longo de vários anos. Quando o real foi disparado, já tínhamos feito umas duas rodadas com refinanciamento desses estados e programas de ajustes e já ajustando os bancos. Junto com o real, veio uma nova disciplina de supervisão bancária. Com a adoção do convênio de Basileia (que estabeleceu recomendações para as exigências mínimas de capital para instituições financeiras), o FGC (Fundo Garantidor de Crédito), tudo isso foi inventado ali, naquele momento, para lidar com uma situação crítica de crise bancária aberta. Isso que os americanos depois tiveram em 2008, nós tivemos muito pior, na nossa proporção, é claro, e tivemos que lidar com isso como uma cirurgia de peito aberto. Mais de cem bancos quebraram naquele momento, enfim, com custos, mas resolvemos.
Para isso não apenas tivemos que praticamente extinguir a ideia de banco estadual, porque os estados não podem ter nada que se pareça com o Banco Central. O Banco Central só um pode ter um que é da União e os bancos comerciais federais, o Banco do Brasil e a Caixa, têm que funcionar igual a outros bancos e não como filiais do Banco Central ou matrizes do Banco Central, como alguns deles achavam que eram. São mudanças dificílimas de fazer, começando ali no momento da inflação, onde todos os maus hábitos do mundo eram a regra.
Cada uma dessas batalhas teve o seu tempo . Não foi só a noite da URV, foram anos de trabalho, muitos deles reformas que se desdobraram e ainda estão em andamento. Algumas já ficaram para trás. Resolveu, mas às vezes volta. Os estados, como você lembrou bem, estavam arrumados quando veio a Lei de Responsabilidade Fiscal, no ano 2000, e ali tinha uma métrica que era o nível de endividamento e o nível de comprometimento das receitas com a folha de pagamento. Com base nisso, a União funcionou como uma espécie de FMI da Federação e financiou os estados. Mas aí, mais adiante, o governo Dilma Rousseff estragou tudo de novo (houve renegociação das dívidas em 2014, mudando os termos acertados no acordo de 1997, com mudança no indexador e redução de juros). Estava na hora de fazer uma outra lei de responsabilidade fiscal. Isso é assim mesmo. Alguma coisa precisa refazer, corrigir o curso. Ou vem um outro governo que estraga tudo e começa tudo de novo. E assim é a democracia, tem alternância no poder, tem choques que vêm de fora, que vêm de dentro. A vida econômica, infelizmente, é muito instável.
“Mais de cem bancos quebraram, veio uma nova disciplina de supervisão bancária. Isso que os americanos depois tiveram em 2008”
Você tem falado muito do risco das pequenas inflações, que a estabilidade é uma coisa conquistada, mas que você tem que mantê-la. Qual o risco que corremos?
Quando fizemos o Real, a inflação brasileira estava na faixa de 50% ao mês, que é 12.500% ao ano. Então, quando hoje a gente discute a meta de inflação anual de 3%, parece um excesso de zelo. Mas não, a pessoa que foi viciada não pode tomar um drinque sozinho e achar que é tudo normal. Não é! Nunca mais. A gente tem que ter muito zelo nesse assunto, porque toda a tecnologia desse vício, a correção monetária, está na cabeça das pessoas, dispara um pouco de inflação e começa tudo a degringolar. Não pode nunca voltar para aquela situação de antes.
Temos proteções para isso. Nossas instituições, sobretudo referentes à governança da moeda, estão bem protegidas. Pode sempre estragar. Um mau governante, um mau momento do país, da política pode sim estragar tudo. E é mais fácil ainda para um país que já viveu esse estrago e parece que não tem medo. Quem já foi viciado descontrolado, sabe como é difícil a sobriedade. Vamos ter que cuidar da nossa saúde com muito zelo daqui para frente.
Como foi a mudança do câmbio fixo para o flutuante (o novo regime foi adotado em 1999, após a saída de Gustavo Franco da presidência do Banco Central), no meio de uma campanha eleitoral?
Agora, olhando em perspectiva, não foi isso tudo não. A temperatura do assunto estava alta por causa da eleição. E que tal como em 1998, como em 1994, a oposição dizia que era tudo uma farsa e que o câmbio era um artificialismo mantido exclusivamente para ganhar a eleição. Falou isso em 1994, insistiu, insistiu, perdeu em 1998 a mesma coisa, mas quatro anos depois… (Lula, do PT, venceu a eleição em 2002). E aí outras crises vieram, outros assuntos dos bancos, os estados, bancos federais, bancos estaduais, várias agendas foram e voltaram. Esta do câmbio foi mais uma, quando passamos para o flutuante. Segue o jogo. Não tinha nada de artificial. O real está aí até hoje. Não tinha nenhum truque, nenhuma farsa. Ninguém teve perda. Essa conversa acabou.
Mas, naquele momento, tinha uma pressão para sair do câmbio fixo, ir para flutuante, da própria equipe econômica, mas tinha uma pressão para manter o câmbio fixo, como era véspera da eleição. Como foi lidar com isso?
Teve esse tipo de pressão. Desculpa, mas teve todos os dias, desde o começo, em câmbio, como no juro, como no Tesouro Nacional em cada leilão do Tesouro, sabe? Faz congelamento, não faz congelamento? A conversão de salários é pela média ou pelo pico? Qual o valor do salário mínimo? O plano econômico é cheio dessas coisas críticas. E o câmbio era uma delas. Agora, acho que o câmbio foi uma decisão muito boa, porque como é que se vai fazer um plano de estabilização sem ter o fiscal, sem ter uma porção de coisa que nunca é o ideal.
Fazer qualquer plano de estabilização é tomar decisões em condições bem piores que as ideais, sob incerteza. E aí é o seguinte, em 1998, nessa segunda eleição, a inflação foi 1,6% no ano para os 12 meses, para quem saiu de 12.500% ao ano em junho de 1994. E aí o pessoal reclama que está tudo errado, entendeu? Não está, não, desculpa. A discussão sobre o câmbio virou um grande batalha de Itararé sobre a farsa que era o Plano Real. Não tinha farsa nenhuma. Esta aí até hoje. E a mudança para o câmbio flutuante não era desfazer absolutamente nada de tão básico no plano. Na verdade, o plano nasce com a moeda flutuando em julho de 1994. É um espinho na garganta de quem perdeu a eleição em 1994 e 1998. E essa coisa de que era tudo uma farsa. Desculpe, não era não.
Em algum momento, você achou que o plano poderia fracassar, que a inflação poderia voltar?
Todos os dias, todos os dias. Porque a rotina desse tipo de esforço é todo dia uma encrenca. Todo dia uma não, todo dia tem 40 encrencas, 20 a favor, 20 contra e todo dia você acha que quando foi bom foi por pouco. E quando perde, perde por pouco também. Tem dias muito ruins, dias que você acha que acabou tudo, más notícias e tem os dias bons. Eles se alternam e de algum jeito você vai avançando, avançando, avançando e quando você vê se já ultrapassou muita coisa, chegou onde você não imaginava que podia chegar. Foi assim. Ninguém tinha certeza, tínhamos convicção, que é diferente, mas não se sabe se vai tudo funcionar, se todas as peças vão voltar ao lugar.
Esse livro que a gente fez agora dos 30 anos, a gente buscou os textos que nós escrevemos nos aniversários. E aí se percebe a evolução, como estava o campo de batalha. Não se tinha muita certeza de nada. Na verdade, sempre muita preocupação com o que tinha para vir, já que muito do fundamento de um plano como esse, que muda a trajetória futura do país, depende de coisas que ficaram por fazer, reformas que foram prometidas e que, muitas das vezes, demoraram anos para sair do papel. Tem que mostrar progresso todos os dias. E teve dias muito ruins.
Eu acho que vale recordar a véspera do primeiro dia, que foi 28 de fevereiro de 1994, quando teve a reunião ministerial para fechar o texto da medida provisória que criou a URV (Unidade Real de Valor que era corrigida diariamente e depois se converteu no real em 1º de julho de 1994). O presidente (Itamar Franco) chamou para uma reunião de alguns ministros no Palácio. Fernando Henrique (Cardoso, ministro da Fazenda) foi e levou assessores. Eu e Murilo Portugal, secretário do Tesouro, ficamos na antessala para se precisassem de algum esclarecimento técnico. Chamaram a gente uma vez, duas vezes, três vezes. E aí disseram: “Fica aí” e ficamos. Assistimos a reunião inteira que começou umas 10h e a gente deve ter entrado meio-dia na reunião e ficou até as 8 da noite. Nesse dia, eu vi o ministro da Fazenda pedir demissão três vezes, não foi uma, foram três vezes. Levantar da mesa e dizer: “Assim não dá. Se for para fazer desse jeito, eu vou me embora. Fazem vocês”. Tudo isso podia não ter acontecido na véspera.
O que ele se recusou a fazer?
Desses três assuntos, um era conversão de salários pelo pico, o outro era congelamento de preço e outro era salário mínimo cem dólares. “Se é para fazer o Plano Cruzado de novo, não vai ser com a gente”. E o ministro foi firmíssimo. “Ah, é para fazer assim? O presidente que sabe, mas então não é comigo, nem conosco. Vamos todos embora.” Não, senta aí, e retoma a conversa. Conseguimos que o presidente assinasse a medida provisória exatamente como nós propusemos a ele. E deu certo.
O que você acha que faltou fazer?
Se eu fosse escolher uma coisa, a revisão constitucional, que era para ter acontecido cinco anos depois da promulgação, em 1993. Houve uma decisão política das lideranças da ocasião, presidente, outros líderes políticos que não iam fazer. Acho que o pessoal da área política percebeu que a estabilização traria uma onda grande de reformas. O pensamento político foi: ah, então deixa eles fazerem do jeito normal das emendas constitucionais, com duas votações nas duas casas. Vai demorar uns 20 anos a mais, mas fica mais legítimo. Raciocínio político. Foi um erro, no meu modo de ver, reforma da Previdência, vamos ter que fazer outra, agora, a trabalhista, a abertura do petróleo, algumas ficaram para trás que a gente nem lembra. A que abriu as telecomunicações, que fez todo mundo ter celular foi lá atrás, no começo do governo Fernando Henrique. Tudo poderia ter acontecido em 1993. O tempo que a gente perdeu. A do saneamento estamos fazendo agora, nem começou direito ainda. Quantas pessoas morreram de doença por causa de mosquito, de saneamento ruim ou do dano ambiental de esgoto no mar, nos rios, esse tempo todo? Não é brincadeira adiar essa agenda de reformas. Poderíamos ter começado isso em 1993, mas não. A decisão foi fazer do outro jeito mais difícil. E aí, claro, mais difícil, mais tempo, mais custo. Talvez nisso esteja a essência das resistências que nós enfrentamos à estabilização. Muitos interesses são feridos. Todo mundo que ganhava de algum jeito com a inflação reagiu contra o Plano Real, seja porque achava que o câmbio estava errado, o juro estava errado.
O economista Edmar Bacha fala que falta a abertura comercial. Também tem essa opinião?
Uma conversa difícil de entabular naquela ocasião era conversa sobre produtividade, era reconhecer que o Brasil é um país de baixa produtividade, por isso de baixa renda per capita. E muito disso tem a ver com ser um país fechado, com essa ideia louca de substituição de importação e autossuficiência. Na minha cabeça está totalmente obsoleto, mas era talvez muita coisa para dizer naquele momento. Hoje parece fácil dizer que a irresponsabilidade fiscal é uma coisa ruim. Naquele tempo, não. A ideia não morreu, mas está pequenininha hoje. Mas a autossuficiência continua sendo uma vaca sagrada e o Brasil continua sendo um país fechado, de baixa produtividade. Essa talvez seja a mãe de todas as reformas. Temos um grau de abertura hoje que é o mesmo de 50 anos atrás, talvez um pouquinho maior, quando o mundo inteiro cresceu com base na expansão do comércio exterior, sobretudo a Ásia. A conclusão é que a estratégia de autossuficiência fracassou. Como fracassou lá na União Soviética. Mas era uma reforma que pareceu um pouco além do seu tempo naquele momento. Falar de privatização, por exemplo, também já era um assunto difícil. Hoje em dia, ninguém ou pouca gente se lembra que temos celular falando com todo mundo lá no WhatsApp porque teve privatização da telecomunicação. Se dependesse da Telebrás ou das companhias telefônicas estaduais, sem ferir ninguém, não tinha zap hoje em dia..
A abertura nunca conseguiu decolar. Ficou para um outro momento que não chegou ainda. Talvez seja a grande reforma do século XXI, da segunda metade do século XXI, que possa talvez fazer o Brasil virar um país rico que ele não virou. Eu achei que isso aconteceria no meu período. Depois que eu me formei — em 1979 — eu falei no meu discurso formatura, falando que o Brasil vai, enfim, ser um país rico daqui a 30, 40 anos, quando eu me aposentasse, pois eu me aposentei, já estou aposentado e nada. Não aconteceu. É uma frustração da minha geração. A gente conseguiu acabar com a inflação, mas não fizemos o Brasil virar um país rico. Isso vai ficar para a próxima geração de economistas. Talvez a abertura seja a grande chave para fazer a produtividade brasileira crescer. Abertura produz competição, concorrência. Nada melhor do que concorrência para fazer todos mundo trabalhar melhor. Talvez venha, tomara que não demore muito.
Algumas pessoas chegaram a comparar os efeitos da Reforma Tributária que foi aprovada recentemente ao real. Acha adequada essa comparação?
De jeito nenhum. Eu pessoalmente não acho que esta Reforma Tributária tenha nem de perto nada parecido com o Plano Real. Ela resolve algumas das distorções que o Brasil tem no sistema tributário, até porque se concentra em uma área específica que é a dos impostos de consumo. Onde, sim, temos muita disfuncionalidade na federação, já que os estados têm autonomia para criar impostos sobre valor adicionado e a União também. Os municípios também. Era preciso organizar. Há um ganho em organizar isso, mas outra ordem de grandeza em matéria dos benefícios.
“Se a gente, como nação, não for capaz de substituir os dirigentes do Banco Central sem fazer bagunça, há algo de errado com a gente”
Como você vê o comportamento do Banco Central autônomo, com o presidente do BC trabalhando com um presidente da República que não o indicou?
Eu acho que foi um super progresso que fez com que essa eleição, polarizada como foi, não tivesse causado nenhuma turbulência financeira ou monetária. O Banco Central de Roberto Campos Neto fez a taxa de juro ir para 2%, que foi a menor Selic da história, em razão da pandemia. Depois teve que subir porque 2% foi demais, durante a eleição. Não pense que isso foi fácil para o presidente que estava disputando a eleição. Em seguida, o presidente de agora se queixa que está demorando para cair. Todo mundo se queixa, sinal que está fazendo o que tem que fazer, que é proteger a nós, cidadãos, do mau uso que os políticos podem querer fazer da moeda. Ele está lá para evitar que isso aconteça.
Em algum momento, no final do segundo ano desta presidência, é o momento em que três dirigentes do Banco Central esgotam seus mandatos e novos nomes serão submetidos ao Senado e vão ser sabatinados. E aí o presidente Lula terá nomeado sete de nove diretores. Ou seja, é uma transição gradual no Banco Central e, mesmo assim, será preciso ver se os nomes que o presidente Lula trouxer vão alterar o jeito de funcionar. Até agora não. O presidente Lula já foi presidente em duas ocasiões e não aconteceu nada com o Banco Central. Funcionou igualzinho como funcionava antes no Lula um, Lula dois. Teve Dilma um e dois. O Banco Central tem 30 anos, está funcionando mais ou menos do mesmo jeito e vai funcionar desse jeito provavelmente nos próximos 30 anos. Agora serão três novos dirigentes, incluindo o seu presidente. Eu suponho, que o normal é que não aconteça nada de muito diferente. Durante esse período não aconteceu nada, nem é para acontecer nada demais numa alternância democrática. Se a gente, como nação, não for capaz de substituir os dirigentes do Banco Central sem fazer bagunça, há algo de errado com a gente. Não, vamos fazer isso direito. Tenho certeza que vai acontecer tudo certinho.